Lacan(agem) parisiense

Para o amigo Zé Lima.

No período ginasial tive uma professora de geografia que viajou a Paris. Na volta, mostrava mapas, fotos, revistas, postais e contava, com uma alegria contagiante, os passeios nos castelos, as histórias de reis e rainhas. Naquele tempo havia no currículo das escolas públicas aulas de língua francesa para as crianças. Guardo com carinho o livro Le français par l’image de Irma Aragonés Forjaz, publicado pela Companhia Editora Nacional. Este é um traço mnêmico determinante de toda minha formação acadêmica e experiência existencial: desde sempre, voltada para os autores franceses. Alinho-me à leitura que fizeram (e fazem) das obras de Nietzsche, Freud & Marx, meus alemães de coração. Portanto, meus livros prediletos são da lavra da língua francesa.

 Seguindo a proposta de apresentar livros e os lugares em que foram gestados, comento O Seminário do psicanalista Jacques Lacan. No conjunto, a obra é composta por 26 livros transcritos a partir das aulas públicas proferidas anualmente em diversos lugares de Paris de 1950 a 1980. Lacan não foi um professor universitário contratado: falava onde permitiam e quando convinha à instituição que lhe acolhia. Como sua fala era deveras incômoda, logo era desalojado e procurava outro local para continuar transmitindo a psicanálise através de ato singular de ensino. Sempre expulso, era um outsider na psicanálise. É clássica sua aula na escadaria do Panthéon em Paris em 1969.

Lacan falou e escreveu muito: acusou, denunciou, convocou, atraiu multidões e ressentimentos. Foi um dos mais brilhantes operadores da ironia na modernidade. Fez de seu ser um semblante surrealista (a la Salvador Dali, de quem era amigo) e um discurso que não fosse semblante de nenhuma doutrina fundamentalista. Excomungado da Associação Psicanalítica Internacional por praticar uma clínica fora dos padrões e normas institucionais, fundou sua Escola em 1964 estabelecendo princípios éticos para a formação de psicanalistas numa autonomia desejante sem precedentes na história da psicanálise.

Sua exposição pública no estilo Seminário era um verdadeiro espetáculo. No começo, falava aos poucos alunos em formação e estagiários de psiquiatria. Aos poucos, o público aumentava e o nome do Dr. Lacan ganhou notoriedade. A imprensa, a academia universitária e a classe artística parisiense fizeram do Seminário um espaço de diálogo público sobre o mal-estar na civilização europeia pós Segunda Guerra Mundial.

As sessões (aulas) dos Seminários foram registradas: no início com estenografia e, com o advento dos gravadores portáteis, em fita cassete. Cada ouvinte do Seminário fazia seu registro. Sabiam que estavam diante de um acontecimento: um homem convocando a todos que tinham interesse na psicanálise a renovarem suas apostas nas exigências éticas da clínica e da política derivadas da obra freudiana. A cada ano um tema era escolhido e hoje, em retrospectiva, podemos ver o percurso trilhado por Lacan ao longo de 26 anos de exposição pública.

Para concluir, duas cenas: na abertura do Seminário 3 em 1955, Lacan interrogou a cientificidade da psicologia e da psiquiatria organicista: “Da psicologia humana, é preciso dizer o que dizia Voltaire da história natural, a saber: que ela não é tão natural assim, e, em resumo, que ela é o que há de mais antinatural. Tudo o que, no comportamento humano, é da ordem psicológica está submetido a anomalias tão profundas, apresenta a todo instante paradoxo tão evidente, que surge o problema de saber o que é preciso nela introduzir para que a gata encontre seus filhotes.”

Noutra, convidado a falar com estudantes no Centro Experimental Universitário de Vincennes em 03/12/1969, um cachorro entrou e desfilou pela sala. Lacan parou, olhou atentamente os movimentos do ser canino e disparou: “É a única criatura que sabe o que fala — não digo que saiba o que diz. Não que ela não diga nada — não o diz em palavras. Tenho uma cachorra chamada Justine, ela é muito bonita. A única diferença entre ela e este que está passeando é o fato de ela não ter ido à Universidade”. Encarando a plateia de jovens, pós-maio de 1968, Lacan atacou: “o contestador prepara sozinho o seu chocolate matinal”.

in: série “livros e lugares” – Caderno Cultura do Jornal de Piracicaba, 08/dez/2013

ilustração: Erasmo