Sartre em Araraquara

Em 1960, Jean-Paul Sartre esteve no Brasil como convidado de honra no 1º Congresso de Crítica e História Literária realizado em Recife. De lá passou por Salvador visitando terreiros de candomblé e comendo acarajé. Simone de Beauvoir, sua fiel escudeira, aparece nas fotos sempre com a expressão de quem se pergunta: o que é que eu estou fazendo aqui? Da Bahia para o Rio de Janeiro, Sartre atraía multidões, jornalistas, fotógrafos e acadêmicos da filosofia, literatura e ciências sociais. Era aclamado como portador do oráculo da dialética marxista aplicada aos movimentos de libertação. Um existencialista comprometido com as lutas sociais de emancipação.

 Na recepção do filósofo francês era alta a expectativa dos paulistas, afinal Sartre trombeteava as conquistas históricas do Partido Comunista. O grande encontro ocorreu em Araraquara, na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (atual Faculdade de Ciências e Letras da Universidade Estadual Paulista). A conferência gravada foi transcrita e editada em 1986. A Conferência de Araraquara (Editora Unesp) é um marco histórico na cultura brasileira. Traduzida pelo saudoso professor Luiz Roberto Salinas Fortes, um filósofo araraquarense, o texto registra um ponto de inflexão na história do pensamento contemporâneo: um deslocamento na filosofia existencialista sartreana. Ao substituir a fenomenologia como método e adotar a dialética marxista, o que resta do existencialismo? Sartre estava nesta “sinuca de bico”, como diz o caipira.

No livro A Força das Coisas (1963), Simone de Beauvoir narrou esta visita ao interior paulista: “Em Araraquara, Sartre engoliu alguns sanduíches e por volta das 2h entrou no anfiteatro coberto de faixas: ‘Viva Cuba!’ ‘Viva Sartre!’ ‘Fale das favelas!’. Os estudantes discutiam com Sartre sobre as possibilidades, no Brasil, de uma revolução análoga à de Castro. Sartre colocou-lhes questões sobre as ligas camponesas, falou-lhes da necessidade de uma reforma agrária.”

Um intelectual engajado nas causas sociais de luta pela libertação da opressão capitalista. Um filósofo disposto a uma ação política pela libertação dos povos. Na introdução, Salinas Fortes destacou o contexto histórico da conferência: “Do ponto de vista político dois foram os temas principais das conferencias pronunciadas no Brasil: o colonialismo e a revolução antiimperialista. Ou seja, Argélia e Cuba, as duas grandes frentes de batalha do momento”. Envolvido na luta pela independência da Argélia, na época , colônia da França , Sartre foi propagandista da Frente de Libertação Nacional (FLN) e não poupou esforços para divulgar a luta argelina através do periódico que dirigia: a revista ‘Les Temps Modernes.”

Alguns meses antes de chegar ao Brasil, Sartre visitou Cuba a convite de Fidel: “Das conversas com Castro e Guevara, além das observações de toda ilha, Sartre não podia deixar de sair contagiado. É a ‘lua-de-mel’ da Revolução, proclama, seduzido pelo fervor combatente deste instante inaugural. A façanha inaudita dos jovens barbudos, que já conquistara definitivamente a imaginação de toda uma geração do mundo inteiro e em especial na América Latina, ganha o seu primeiro grande propagandista internacional. Nas conferências pelo Brasil afora, Sartre confirma a expectativa geral e reforça as esperanças”. O pequeno-grande homem da filosofia francesa pós Segunda Guerra Mundial, proclamava ser possível enfrentar as forças capitalistas.

A extrema-direita francesa que defendia as tropas francesas na Argélia convocou cinco mil soldados combatentes na Segunda Guerra para uma passeata em plena avenida Champs Elysées. Dentre os truculentos slogans contra a esquerda, vociferavam: “Fuzilem Sartre”. Enquanto isso, Sartre era ovacionado em Araraquara como a pitonisa da libertação nacional. O cenário político brasileiro é marcado pela ascensão da liderança popular de João Goulart, o celebrado Jango. O tema da reforma agrária era a bandeira de luta principal das ligas camponesas. Era “a tampa e o balaio”, como se diz no interior.

Na platéia de Araraquara estavam nomes como Jorge Amado, Antonio Candido, Fernando Henrique Cardoso, Ruth Cardoso, José Celso Martinez Correa, Fausto Castilho, o anfitrião, aluno de Sartre em Paris. Além dos estudantes e lideres dos movimentos sociais. A população da pacata cidade interiorana, não entendia nada do que estava acontecendo. A cidade foi tomada por uma multidão que queria ver e ouvir a personalidade presente. Sartre ficou surpreso com a receptividade. No plano da história oral, conta-se que no mesmo dia houve um jogo de futebol e o Ferroviária (time da casa) ganhou de 4 x 0 do Santos. Sem saber o motivo,Sartre acreditou que a festa popular pelas ruas cantando a vitória era em sua homenagem. Um verdadeiro pop star da filosofia contemporânea.

in: série “livros e lugares” – Caderno Cultura do Jornal de Piracicaba, 01/dez/2013

ilustração: Erasmo