Imaginação, Ciência e Poesia

“A ciência, a nova nobreza! O progresso. O mundo marcha! Por que não haveria de girar?” (Arthur Rimbaud)

A epistemologia (reflexão filosófica sobre a história do conhecimento científico) de Gaston Bachelard merece ser estudada nossos dias de hoje. A singularidade de seu trabalho de pensador pode ser reconhecida em dois de seus mais importantes leitores: o médico e filósofo Georges Canguilhem e, Michel Foucault. Em torno deles formou-se a clássica Escola de Epistemologia Francesa. O conceito “corte epistemológico” (um acontecimento que instaura descontinuidade na história das ciências), muitas vezes empregado por Foucault, é um marco decisivo na pesquisas arqueológicas e genealógicas. Tal conceito é “ad valorem” das leituras que realizou da obra de Bachelard.

 Químico por profissão (diurno) e filósofo por paixão (noturno), Gaston deixou um conjunto de escritos de imenso valor para interrogarmos a vontade de saber na produção do conhecimento científico. Distinguindo teoria científica e artefato tecnológico, defendeu (tal como um Don Quixote) o direito de sonhar, devanear. Seu objetivo era a formação do espírito científico. Considerado instaurador de um novo racionalismo: “aberto, setorial, dinâmico, militante”.

A imaginação comanda decididamente a criação de conceitos, teorias e modelos explicativos do real. As formas de compreensão dos fenômenos naturais e humanos são teleguiadas pela imaginação. Toda teoria científica é forjada no mesmo fogo das ilusões e das crenças míticas. Os conceitos são imagens e as estatísticas a maquilagem. É da imaginação que a ciência retira seu maná de verdade (bingo!).

Alocado na condição de mestre de uma geração de pensadores pós década de 1940, destaco um trecho da carta enviada por Bachelard, logo após a leitura do livro História da Loucura (já comentado nesta coluna), ao jovem filósofo Michel Foucault. Iniciou a missiva congratulando o nascimento de um livro que fez um corte epistemológico nos estudos históricos sobre a loucura : “Hoje acabei de ler seu grande livro. Os sociólogos vão muito longe para estudar populações estrangeiras. O senhor lhes demonstra que somos um bando de selvagens . O senhor é um verdadeiro explorador.

Anotei seu projeto de ir explorar o século 19 (tarefa cumprida em 1966, com As Palavras e as Coisas).

Concluindo, convidou o jovem filósofo a visitá-lo: “Serei obrigado a deixar a maravilhosa Paris, mas venha me visitar em outubro (1962). Quero felicitá-lo de viva-voz, contar e recontar todas as alegrias que senti ao ler suas páginas, em suma, falar-lhe de minha mais sincera estima”. Poucos meses depois o químico-filósofo morreu e o abraço ficou na saudade.

Nos estudos sobre os funda- mentos da imaginação na criação poética (artes plásticas e literatura), o Bachelard noturno se dedicava aos livros de Lautréamont, Mallarmé, Arthur Rimbaud, Paul Eluard, Edgar Poe. Nos livros A Poética do Espaço e A Poética do Devaneio, encontram-se os principais argumentos para uma fenomenologia da imaginação – filosofia da poesia, como gostava de chamar. Definiu a imaginação como “pura energia (força) voluntariosa e criadora”.

Na introdução da Poética do Espaço proclamou a independência, autonomia temporal, da imagem poética: “o ato poético não tem passado”. Como ato, inscreve a singularidade no devir da linguagem e das coisas: um acontecimento na história da cultura. Rompendo definitivamente com a noção de causalidade na compreensão da imagem poética, declarou que ela “não esta submetida a um impulso (e) não é eco de um passado. É antes o inverso : pela explosão de uma imagem, o passado longínquo ressoa em ecos. Nessa repercussão a imagem poética terá uma sonorida- de de ser. O poeta fala no âmago do ser”.

Decorre então uma inversão significativa: doravante só podemos compreender o passado pelo presente e não o presente pelo passado. Bachelard subverteu a concepção hegemônica da historiografia positivista que legitima o  presente na causalidade do passado. Na temporalidade linear, o passado é causa; o presente é a conseqüência ; e o futuro um brilhante e promissor progresso. A imaginação poética, sendo presente sem passado, foi elevada à condição de princípio da criação: artística, filosófica e científica.

in: série “livros e lugares” – Caderno Cultura do Jornal de Piracicaba, 15/dez/2013

ilustração: Erasmo