Romances Natalinos

Todo ano com aproximação do Natal e festejos do Réveillon somos tomados por um tsunami de afetos altruísta e os encontros de confraternização se multiplicam. Os encontros familiares começam a se anuviarem e de um modo ou de outro, todos são convocados a suspenderem as mágoas, rancores, raivas, ressentimentos e sentimentos afins, designados pela moral como agentes do mal. Na imagem sublime da natividade, o ódio é subitamente colocado em suspenso e suspense: o amor irá triunfar e, quiçá sobreviver às comidas, bebidas e trocas de presentes.

 A família é valorada como símbolo do Natal. Ocorre que há famílias, no plural. Cada unidade básica, cada célula familiar (como diriam os sociólogos funcionalistas), tem uma história singular. Cada um dos membros que compõem uma família tem sua própria narrativa e memórias: seus traços mnêmicos. Cada um conta como é ser filho, filha, pai, mãe, irmão, avó, avô, tio, sobrinho, neto, etc. A família é um romance com seus dramas tragicômicos — como tudo o que podemos narrar nesta vida. Um bom exercício natalino é uma roda de conversa onde cada um pode narrar suas memórias. O perigo é desembocar numa D.R. familiar: dependendo do teor alcoólico dos convivas, o estrago pode ser grande.

No Natal de 1908, Sigmund Freud escreveu uma breve reflexão intitulada Romances Familiares dos Neuróticos. A princípio, tal reflexão foi cedida ao escritor Otto Rank e inserida no livro Os Mitos de Nascimento do Herói. No conjunto da exposição de Rank, a reflexão de Freud é como um atestado de autorização para o jovem discípulo seguir adiante com sua ousadia interpretativa: o herói é aquele que supera a si mesmo (tese retirada do canto de Zaratustra, Da Superação de Si — o que indica a leitura que Rank fez de Nietzsche). O exercício ético de cuidar de si, e superar-se nesta tarefa, é uma conquista heróica.

O breve escrito de Freud é uma pérola no grande baú que compõe sua obra. Neste texto, expressou sua herança darwinista aplicada à pesquisa dos problemas psicológicos e, já preanuncia o livro épico Totem e Tabu publicado em 1912. Ao mesmo tempo, o texto pode ser reconhecido como o ponto de passagem para aplicação da teoria psicanalítica aos estudos da constituição familiar: tema central da antropologia e sociologia no final do século 19. Na consolidação da ideologia burguesa republicana, pós revolução francesa, a família foi elevada à condição de célula mater da sociedade.

Freud partiu da seguinte premissa: para crescer, o indivíduo precisa libertar-se da autoridade dos pais e este é o gesto heroico mais doloroso, com consequências decisivas para a autonomia psíquica e política. Tal libertação é primordial e presume-se que todos os que atingiram a autonomia conseguiram se libertar pelo menos em parte desta autoridade. “Na verdade, todo o progresso da sociedade repousa sobre a oposição entre gerações sucessivas. Para a criança, os pais são a única fonte de autoridade e de conhecimento. O desejo mais intenso e mais importante da criança nesses primeiros anos é ser igual aos pais. Contudo, com o tempo, a criança vai descobrindo gradualmente a que categoria seu pai e sua mãe pertencem.”

Ao conhecer outros pais, as crianças “começam por em dúvida as qualidades extraordinárias e incomparáveis que atribuía aos seus. Qualquer descontentamento, contrariedade ou frustração é pretexto para começar a criticar os seus pais; para manter esta atitude crítica, utiliza seu novo conhecimento de que existem outros pais que em certos aspectos são preferíveis aos seus”. Desta rivalidade primeira pode derivar o desejo de ultrapassar a fantasia infantil e conquistar assim a libertação, tornando-se sujeito capaz de cuidar de si mesmo. Caso contrário, o indivíduo fica alienado num gozo sado-massoquista e capturado nesta atitude crítica passiva: briga com os pais, mas não sai de casa; não desmama.

Há uma epidemia de adultecentes (adultos em idade cronológica e adolescentes em idade psíquica) nos dias de hoje. Estatísticas recentes apontam crescimento no número de jovens/ adultos vivendo sob tutela financeira e moral dos pais. É a chamada geração “nem-nem”: nem estuda, nem trabalha. Só têm direitos, nada de dever.

Do microcosmo familiar, Freud indicou o caminho de formações substitutivas no macrocosmo social: da autoridade dos pais deslizou para a autoridade religiosa e política. “Se examinarmos em detalhe o mais comum desses romances familiares, a substituição dos pais, ou só do pai, por pessoas (ou instituições) mais potentes, veremos em atuação a fantasia infantil primária. Na verdade, todo esse esforço para substituir o pai (ou a mãe) verdadeiro por um que lhe é superior nada mais é do que a expressão da saudade dos dias felizes do passado, quando o pai lhe parecia o mais nobre e o mais forte dos homens, e a mãe a mais linda e amável das mulheres”.

Desejo um Natal feliz e inventivo de natividade aos leitores desta coluna dominical. Que a Virgem do Leite sacie nossa fome de amor e que o menino Deus nos inspire a misericórdia e o cultivo da paz.

in: série “livros e lugares” – Caderno Cultura do Jornal de Piracicaba, 22/dez/2013

ilustração: Erasmo