Histórias da Loucura em Paris

Paris, maio de 1968: os universitários vão às ruas exigir mudança no sistema educacional. Queriam conteúdos modernos em sintonia com as vanguardas da esquerda, liderada pelo célebre PCF (Partido Comunista Francês). A Universidade Sorbonne é ocupada e se propaga na França uma greve de trabalhadores. Estudantes, professores, trabalhadores, apoio midiático e partidário: o estopim revolucionário estava detonado.Marcados pela história de decapitar a monarquia instituída, os franceses se identificam com causas revolucionárias.

O que desejavam os jovens parisienses? O impossível: proibido proibir! Muita tinta e película já correram em retratar este acontecimento recente. O retrato de quem estava lá pode ser contemplado no belo filme, Os Sonhadores (2003), do diretor italiano Bernardo Bertolucci.

O filme narra a história de maio de 1968 acompanhando um encontro amoroso entre irmãos gêmeos (ele e ela) e um jovem norte-americano que flanava por Paris naquele momento. Os acontecimentos políticos criam o pano de fundo para Bertolucci praticar seu ofício: investigação psicológica em um cenário político

Dado a prática da genealogia, meu interesse sempre é dirigido para o campo da proveniência: de onde provem a força revolucionária? O que levou os jovens universitários ao protesto e reivindicação? Protestavam contra os conteúdos ensinados que consideravam representante da ordem instituída.

O protesto visava, sobretudo, uma reforma no ensino superior: o que de fato aconteceu. A força advém também dos livros e dentre outros, um livro marcou essa geração que foi às ruas: História da Loucura na Idade Clássica, escrito pelo jovem Michel Foucault em 1961.

O que era o novo na cultura livresca parisiense neste período? A literatura produzida pelos escritores da linhagem surrealista e o estilo francês de interpretar os livros de Nietzsche, Freud & Marx. Em janeiro de 1968, nomeado docente na Universidade Nanterre, após seu primeiro encontro com os alunos, Foucault anotou: “Curioso como esses estudantes falam de suas relações com os professores em termos de luta de classes”. Perspicaz observação! Era assim:

os alunos se identificavam com os explorados e os professores eram identificados como os exploradores. Uma verticalidade nas relações de poder: os que mandam e decidem e os que obedecem e cumprem o que foi decidido.

Desde sua tese de doutoramento em filosofia até sua morte em 1984,Foucault empenhou-se como um brado para se deslocar desta concepção verticalizante de poder. Nos livros publicados, nos cursos no Collège de France: tudo o que escreveu ou disse em alto e bom tom nos põe diante de uma concepção horizontal de poder. O poder não é apenas exercido verticalmente (de cima para baixo): é, sobretudo, exercido em uma extensa rede de relações horizontais.

O poder é o nome de uma multiplicidade de forças em permanente combate, conflito, enfrentamento. Esta genealogia do poder tem o mérito de nos permitir identificar e reconhecer o poder em uma miríade de situações cotidianas, institucionalizadas e cristalizadas pela força do hábito e da repetição.

Uma analítica do poder compreendido como relações de forças em permanente conflito, permite identificar as formas hegemônicas de controle e coerção dos corpos e quereres. Quando uma força se torna hegemônica, sua propensão é criar corpos docilizados. Partindo

deste pressuposto, Foucault escreveu a obra fundadora de seu trabalho genealógico. O livro reinscreveu a história da loucura em um plano decisivo para que os jovens estudantes franceses pudessem ir às ruas reivindicar uma transformação nas relações de valores entre saber e poder.

No prefácio (excluído após a 2ª edição) encontra-se a relevante tese: a invenção da loucura como doença mental rompeu com um longo diálogo entre a razão e a desrazão. Até o final do século 18, a loucura era a alteridade da razão. Com o advento da doença mental, a razão

ficou sem par: o que restou foi um monólogo da razão sobre a loucura. Nos tempos atuais, é preciso retornar a este livro para escapar das ardilosas armadilhas que estão diante de nós: seja pela exclusão ou pela glamorização da loucura.

in: série “livros e lugares” – Caderno Cultura do Jornal de Piracicaba, 20/out/2013