Paris de Madame Bovary

Madame Bovary é reconhecidamente o romance mais importante da literatura francesa: fundador do realismo moderno. Um dos meus preferidos que gosto de reler com deleite. Tive uma linda gata siamesa (cruelmente assassinada por envenenamento) com o nome da personagem de Gustave Flaubert.

Em 1856, o romance é publicado em capítulos( folhetim, tal como novela das 21h) na Revista de Paris. Avidamente, os leitores acompanhavam as desventuras da jovem Emma Bovary em busca de uma vida glamorosa representada pela ascensão da classe burguesa parisiense: festas, bailes, vestidos, valsas e teatro operístico. Órfã de mãe, Emma vivia com seu dedicado pai, no sítio entre gansos e suspiros melancólicos. Inebriada com os livros de romances, imaginava ser Madame. Eis que o destino lançou os dados e a jovem fez sua aposta: seu pai quebrou o pé e certo doutor da região é chamado para os cuidados. Emma decidiu de pronto conquistar o médico, casar e viver na cidade: lugar onde seus sonhos poderiam se realizar.

 A transição da vida campesina para a vida urbana, a passagem entre o tradicional e o moderno marcam o cenário cultural do romance de Flaubert. A cada capítulo, o público leitor aumentava. Se houvesse um marcador Ibope na época, a novela de Flaubert seria considerada campeã. Com a visibilidade crescente de sua personagem, o autor foi à desforra e fez crítica radical aos valores burgueses emergentes.

O retrato social da vida de consumo e ostentação é cristalino na escrita de Flaubert. Do campo para a cidade, Emma deseja ser desejada, reconhecida e sintonizada com o espírito urbano de seu tempo. Não conseguiu chegar a Paris. Aos pedaços, ficou pelo caminho: desistiu, foi abatida pelos valores que cultuava. O suicídio foi o seu fim.

O livro Madame Bovary, lançado em 1857, acarretou ao autor um processo jurídico por ofensa à moral pública e religiosa. No julgamento, tal a veracidade da personagem, foi interrogado sobre quem teria sido o modelo. Sua resposta é antológica: “Madame Bovary sou eu”.

Em uma carta de 1851 ao editor da Revista de Paris, Flaubert escreveu: “você sabe muito bem que sou o homem de ardores e de abatimentos. Se você conhecesse todos os invisíveis fios de inação que cercam meu corpo e todas as brumas que flutuam em meu cérebro! Experimento freqüentemente uma fadiga de matar de tédio quando é hora de fazer alguma coisa seja lá o que for, e é só por meio de grandes esforços que consigo captar a mais clara das idéias. Minha juventude me mergulhou em não sei que ópio de estupidez pelo resto de meus dias. Eu tenho ódio à vida. A frase saiu, que fique! Sim, à vida, e a tudo o que me lembra que é preciso suportá-la”.

Sem rumo e direção, indagou: “Não é preciso que cada um siga seu caminho? Se rejeito o movimento é porque talvez eu não saiba andar. Há momentos em que acredito que estou errado porque quero fazer um livro razoável e por não me abandonar a todos os lirismos, violências, excentricidades filosóficos-fantásticas que me aparecem. Quem sabe? Será que um dia vou parir uma obra que pelo menos seja só minha?” Cinco anos depois nascia sua Madame Bovary.

A descrição da personagem é estupenda. Ilustrando: Emma “sentia necessidade de poder tirar

das coisas uma espécie de proveito próprio, e repelir como inútil tudo o que não contribuísse para a alegria imediata do coração, porque tinha um temperamento mais sentimental que artístico, procurando emoções e não paisagens”; “quanto mais próximas lhe ficavam as coisas, mais seu pensamento se afastava delas; confundia, no desejo, a sensualidade do luxo com as alegrias do coração, a elegância dos hábitos com a delicadeza dos sentimentos”; “vivia como perdida no gozo antecipado de sua próxima felicidade.”

Não é sem motivo que o psicodiagnóstico contemporâneo criou uma categoria de doença psíquica chamada bovarismo: tendência que certos indivíduos apresentam de fugir da realidade e imaginar para si uma personalidade e condições de vida que não possuem,

passando a agir como se as possuíssem. O funcionamento psíquico bovarista dá ao parecer o  valor de ser: eu apareço, logo existo!

in: série “livros e lugares” – Caderno Cultura do Jornal de Piracicaba, 27/out/2013