Narrava, no artigo anterior, as peregrinações de Sigmund Freud a Roma e as visitas ao túmulo do papa Júlio 2º na igreja de San Pietro in Vincoli para contemplar a figura do patriarca Moisés, esculpido no mármore por Michelangelo. Destas visitas, nasceu o artigo Moisés de Michelangelo, publicado anonimamente em 1914. Neste texto, encontramos um testemunho importante: “As obras de arte exercem sobre mim um poderoso efeito, especialmente a literatura e a escultura e, com menos freqüência, a pintura. Isto já me levou a passar um longo tempo contemplando- as, tentando apreendê-las á minha própria maneira, isto é, explicar a mim mesmo a que se deve o seu efeito. Uma inclinação psíquica em mim, racionalista ou talvez analítica, revolta-se contra o fato de comover- me com uma coisa sem saber por que sou assim afetado e o que é que me afeta”.
Literatura e escultura, literaterra! As paixões de Freud desde muito jovem. Colecionava livros e esculturas antigas como fragmentos arqueológicos. Por diversas vezes, utilizou a metáfora do trabalho arqueológico para designar sua prática clínica no tratamento do sofrimento psíquico. Os sintomas são pedaços de letras inscritas por vivências de dor, desprazer, expectativas frustradas: vestígios de um passado que não passa.
Desde criança, Freud demonstrou interesse voraz por livros. Sua potência como escritor é proporcional à potência como leitor. Com a literatura, sustentou as principais colunas conceituais da psicanálise: sua verdadeira obra. Quando os conceitos científicos não lhe serviam para explicar a prática, era nas obras literárias que encontrava suporte para edificar sua teoria. Os livros e artigos escritos por Freud abundam em citações, referências e enunciados retirados da história da literatura. Seu consultório era abarrotado de esculturas de diferentes civilizações.
Em 1906, o editor e livreiro Hugo Heller enviou cartas a várias personalidades do cenário cultural vienense solicitando ao destinatário uma lista com “dez bons livros”. Antes de apresentar sua lista, Freud interpretou a demanda: “O Sr. Deseja que eu lhe indique “dez bons livros”, e recusa-se a acrescentar uma palavra de explicação. Com isso, me encarrega não apenas de escolher os livros, mas de interpretar seu pedido. A meu ver, seu texto põe um acento especial na palavra ” bons”, e com esse predicado quer caracterizar os livros com que nos relacionamos do mesmo modo que com bons amigos, aos quais devemos algo de nosso conhecimento da vida e da nossa concepção de mundo, cujo contato nos proporcionou prazer, e que elogiamos diante dos outros, sem que essa relação suscite um temor reverencial, uma sensação da própria insignificância diante da grandeza alheia”. Na seqüência indicou seus dez amigos, dizendo que sua escolha seguiu o curso de uma associação livre, “os que me vieram à mente sem muita reflexão”.
No Estudo Autobiográfico, publicado em 1925, Freud narrou a extensão da psicanálise nos países europeus e na América do Norte. No que diz respeito a França, afirmou: “o interesse pela psicanálise começou entre os homens de letras. A fim de compreender isso, deve-se ter em mente que, desde a época em que foi escrito A Interpretação dos Sonhos, a psicanálise deixou de ser um assunto puramente médico. Entre seu surgimento na Alemanha e na França está à história de suas numerosas aplicações a departamentos de literatura e estética.”
Quem eram os homens de letras que implantaram a psicanálise na França? Entre eles estavam os integrantes do movimento surrealista. Alguns viveram a experiência de tratamento psicanalítico: Michel Leiris, Georges Bataille, René Crevel e Raymond Queneau. Outros eram médicos psiquiatras (Andre Breton, por exemplo) militantes contra a exclusão e encarceramento dos doentes mentais em asilos hospitalares. De um modo ou de outro, eles iniciaram o movimento histórico da anti-psiquiatria e souberam ler Freud com a literatura. A laicidade da psicanálise esta na gênese de sua criação.
in: série “livros e lugares” – Caderno Cultura do Jornal de Piracicaba, 13/out/2013