Freud, a Literatura e as Viagens a Roma

No texto do último domingo, destaquei a viagem do médico vienense Sigmund Freud a Roma, de lá para Trieste onde embarcou no vapor da Companhia Lloyd meio ao acaso para a Grécia. Nas colunas da Acrópole decidiu publicar seus Ensaios de Sexualidade. Vamos nos deter mais nas viagens a Roma. No livro As Cidades de Freud, Giancarlo Ricci traçou o itinerário do viajante por meio de minuciosa pesquisa que lhe permitiu cartografar os itinerários a partir do epistolário, dos artigos, dos livros publicados por Freud, incluindo registro de hospedagem: “Roma é aquele ponto distante, abstrato e inatingível em torno do qual giram míriades de outras cidades. Ele precisará de seis anos de navegação em terra italiana antes de pôr os pés em Roma. Aos olhos de Freud, Roma, umbigo do mundo, se junta não com o reino do desconhecido, mas com o indistinto, com aquilo que ainda não se deixa reconhecer com exatidão”.

 “Meu desejo de visitar Roma é profundamente neurótico”, escreveu Freud ao querido Wilhelm Fliess. Tal desejo remonta aos estudos ginasiais quando descobriu as batalhas de Anibal. O herói semita, na campanha de conquista do Império. Identificado com o herói Anibal, Freud arrastou esta fantasia até Setembro de 1901, quando enfim, tocou os pés na cidade eterna, em companhia do irmão Alexander. Em suas viagens pela Itália, seguia as pegadas do general: “como ele, não conseguia ver Roma. Anibal e Roma simbolizavam, para mim adolescente, o contraste entre a tenacidade do judaísmo e a organização da igreja católica”. A impressão inicial da chegada foi relatada a Fliess: “uma experiência perturbadora e, como você bem sabe, a realização de um desejo longamente acalentado. Fui frugal em meus prazeres e não tentei conhecer tudo em doze dias. Mergulhei a mãona Bocca della Veritá, em Santa Maria in Cosmedin, e jurei voltar”.

Desde então, Freud tornou-se um apaixonado peregrino de Roma. Nas ruínas arqueológicas da história da civilização ocidental, encontrou refúgio para meditar e tomar decisões importantes. Em Roma assumiu o leme de sua nau, a psicanálise. A cada viagem, diante da monumental figura de Moisés esculpida no mármorepor Michelangelo, na Igreja de San Pietro in Vicoli, Freud encontrava forças para seguir adiante com a sua nau, a causa para qual devotou meio século de trabalho. No outono de 1913, por exemplo, passou várias tardes contemplando o patriarca hebreu para decidir expulsar o discípulo Carl Gustav Jung, psiquiatra suíço, do movimento psicanalítico: “A psicanálise é criação minha; durante dez anos fui a única pessoa que se interessou por ela, e todo o desagrado que o novo fenômeno despertou em meus contemporâneos desabou sobre minha cabeça em forma de críticas”.

A figura de Moisés no mármore transfigurou-se em texto literal, espécie de literatura. Freud não via a imagem propriamente dita: a escultura era um texto em pictograma que convocava e seduzia à decifração. Nenhuma outra obra de arte jamais o impressionara tanto.Em 1912, em outra de suas viagens de férias a Roma, escreveu à sua esposa Martha, contando que visitava diariamente o Moisés de Michelangelo, e que achava que poderia escrever poucas palavras sobre ele.O que mais intrigava Freud era exatamente o fato desta obra o intrigar tanto: “ao longo de três semanas solitárias de setembro, detive-me diariamente na igreja diante da estátua, estudei-a, medi-a, sondei-a.”

As poucas palavras apareceram anonimamente no artigo O Moisés de Michelangelo, publicado em 1914. O curioso é que este é o único escrito Freud no qual ele suprimiu o nome próprio. A autoria do artigo, foi reconhecida dez anos depois, quando formulou o segundo modelo de funcionamento psíquico estruturado em três instâncias: o eu, o super-eu, e o isso, inconsciente.

Seguiremos a trajetória destas viagens para destacar a presença da literatura e das terras percorridas por Freud na escrituração de sua obra.

in: série “livros e lugares” – Caderno Cultura do Jornal de Piracicaba, 06/out/2013