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Paul Gauguin

Os Amigos: Vincent e Paul Gauguin

Vincent Van Gogh desembarcou na tumultuada Paris dos impressionistas em março de 1886 e foi morar no bairro Montmarte, reduto parisiense dos artistas recusados pelos jurados do Salão de Belas Artes. Tinha 33 anos e vivia num estado psíquico atormentado pelo desejo de tornar-se um pintor, um pesquisador das cores. Seu irmão Theo era gerente da filial da casa de comercio de artes que pertencia a um tio da Holanda.

Vincent Van Gogh
Vincent Van Gogh

Édouard Manet com seu quadro Olympia, recusado pelo júri, reuniu, em torno de si, um grupo de pintores que estavam revolucionando a arte pictórica moderna: Edgar Degas, Claude Monet, Renoir, Pissarro, Cézanne, Sisley e Berthe Morisot, a única mulher do grupo. A maioria deles tinha por volta de trinta anos.

Ao chegar a Paris, Vincent ainda teve tempo de visitar a oitava e última exposição dos impressionistas. Descobre a pintura luminosa, onde as cores são a matéria-prima da expressão pictórica. Conhece Toulouse-Lautrec, Paul Gauguin, Seurat, Cézanne e o comerciante de tintas Mrs.Tanguy, com quem conheceu as estampas japonesa e ficou encantado.

Paul Gauguin era um jovem corretor da Bolsa de Valores e, nas horas vagas, tentava imitar os pintores impressionistas: tamanha admiração o levou a investir suas poucas economias na aquisição das telas recusadas pelo Salão. Foi assim um dos primeiros colecionadores destas obras marginais ao padrão estético dominante.

Paul Gauguin
Paul Gauguin

Exausto e sem encontrar um vínculo de criação artística com quem pudesse ter interlocução em sua pesquisa, Vincent deixa Paris e vai em busca do sol no sul em Arles, região da Provença. Encanta-se com o esplendor das cores radiadas pelo sol mediterâneo na primavera em campos de trigo, girassóis e lavanda.

Em junho de 1888, Vincent escreveu um balanço de sua estadia em Paris e os contatos que manteve com o movimento impressionista. Reconheceu a importância histórica de Édouard Manet e o escândalo que causou com sua Olympia. Disse que Manet esteve bem perto de casar a forma com a cor. Casamento que Vincent buscava sem cessar: “todas as cores que o impressionismo pôs na moda são inconstantes, razão a mais para eu utilizá-las muito cruas”.

O desejo de formar uma comunidade de pintores em Arles moveu Vincent arrebanhar seus companheiros de Paris. Dos amigos convidados, somente Paul Gauguin aceitou essa empreitada com um desfecho trágico: numa das discussões entre eles, Vincent cortou um pedaço da orelha e entregou como pagamento para a mulher no bordel, envolvida sexualmente com um e, amorosamente, com o outro.

O convite para formar o Ateliê do Sul foi assim redigido: “Meu caro camarada Gauguin, quero lhe contar que acabei de alugar uma casa de quatro cômodos aqui em Arles. Se desejar trabalhar no Sul e, tal como eu, esteja absorvido o bastante em seu trabalho para se resignar a viver como um monge que frequenta o bordel uma vez por quinzena, então venha. Meu irmão Theo enviará 250 francos por mês para nós dois; em troca, você daria a meu irmão uma pintura por mês”.

Gauguin aceitou a oferta porque estava falido em Pont-Aven e implorava a Theo para vender suas telas para quitar suas dívidas. Vincent estava convencido que a casa amarela em Arles seria uma usina produtora de telas. E foi, com apenas um operário: Van Gogh, o gênio das cores.

in: Jornal Cidade – Rio Claro/SP – agosto/2022 – Projeto Conhecimento para Todos

Os amigos: Dali e Lacan

Em 1926, o jovem catalão Salvador Dali, expulso da Escola de Belas Artes de Madri,  decidiu visitar Paris e Bruxelas em busca de interlocutores à altura de sua genialidade. O cenário artístico da capital francesa fora dinamitado pela revolução surrealista e, Dali encontrou nos militantes da causa surrealista a companhia tão desejada.

Salvador Dalí

De volta à Espanha, publicou o Manifesto Amarelo e, com Luis Buñuel, participou do processo de criação dos filmes Um Cão Andaluz e A Idade do Ouro. Retornou a Paris em 1929 e se apaixonou por Gala Éluard, esposa do poeta Paul Éluard. Formaram um triângulo amoroso com consequências decisivas para a criação artística de ambos.

No ensaio Novas Considerações Gerais Sobre o Mecanismo do Fenômeno Paranóico do Ponto de Vista Surrealista, publicado em 1933, Dalí descreveu os pressupostos do seu método de trabalho, nomeado paranoico-crítico: “o mecanismo paranoico, na perspectiva surrealista em que nos colocamos, é a prova do valor dialético desse princípio de verificação pelo qual passa praticamente no domínio tangível da ação o próprio elemento do delírio; é o penhor da vitória sensacional da atividade surrealista no campo do automatismo e do sonho”.

Jacques Lacan

Neste ensaio, encontra-se uma referência explícita à tese de doutoramento do jovem psiquiatra Jacques Lacan: Da Psicose Paranóica em suas Relações com a Personalidade. A tese do amigo Lacan serviu como ponto de sustentação das posições assumidas por Dalí: a defesa da irracionalidade concreta que emerge da atividade imaginativa, característica fundante do fenômeno paranoico.

“É da tese do Lacan que devemos fazer, pela primeira vez, uma ideia homogênea e total do fenômeno paranoico, fora das misérias mecanicistas em que se atola a psiquiatria corrente. A obra de Lacan dá conta perfeitamente da hiper acuidade objetiva e comunicável do fenômeno paranoico, graças à qual o delírio adquire esse caráter tangível e impossível de contradizer que o situa entre os próprios antípodas do automatismo e do sonho.”

Lacan aproximou-se dos surrealistas e encontrou em Dali um amigo com quem compartilhou a crítica da psiquiatria vigente e na estética do artista construiu seu estilo na leitura inicial dos escritos de Sigmund Freud. Fez assim sua entrada no campo da psicanálise, revolucionando a prática clínica e a interpretação de conceitos fundamentais da psicanálise. Na década de 1950, assumiu o protagonismo do movimento nomeado ‘retorno a Freud’, rompendo os padrões de leitura de Freud dominante e inscrevendo na história da psicanálise o mesmo que Dali fez na história da arte.

O encontro de Lacan com Dali nas noitadas de vinho nos cafés parisienses no início da década de 30, fez do jovem psiquiatra marcado pela questão da paranoia no tratamento da psicose um marco inaugural do que a história veio a conhecer como a Escola de Lacan: lugar de transmissão e da formação de psicanalistas comprometidos com a ética do bem dizer o desejo.

in: Jornal Cidade – Rio Claro/SP – 27/maio/2022 – Projeto Conhecimento para Todos

Os amigos: Freud e Fliess

Os amigos: Freud e Fliess

O amor entre amigos era nomeado philia pelos gregos. O verbo philéo designa amar com amizade, tratar como amigo, amar no princípio da igualdade, reconhecendo no outro os valores que lhe são correspondentes; o amor que põem em relação esse princípio.

Aristóteles dedicou o livro 8 da Ética ao tema da amizade, destacando-a como uma virtude importante para a vida: “Porque sem amigos ninguém escolheria viver, ainda que possuísse todos os outros bens. Amizade ajuda os jovens e aos velhos; aos que estão no vigor da idade, ela estimula a prática de nobres ações, pois na companhia de amigos os homens são mais potentes para criar, agir e pensar

Desde os anos de juventude, Sigmund Freud buscava um amigo com quem pudesse viver sob o signo da philia. Ao longo da vida plena em realizações, Freud esteve na companhia de grandes amigos, homens e mulheres. A vasta correspondência com seus amigos está sob domínio público como registro da história da amizade.

Na série publicada neste matutino, narrei a philia de Freud com Sandor Ferenczi e com Lou Salomé. Hoje apresento o amigo Wilhelm Fliess, médico otorrinolaringologista de Berlim. A Correspondência Completa (1887-1904), traduzida no Brasil em 1986, é um precioso arquivo para acompanhar a potência criativa da teoria psicanalítica.

As circunstâncias que tornaram públicas as cartas de Freud ao amigo Fliess é um capítulo importante na história dessa amizade e na história da psicanálise. No término da amizade, as cartas de Fliess à Freud foram destruídas, uma a uma, no fogo da lareira. Levou tempo para Freud elaborar os efeitos desta ruptura. As cartas de Freud a Fliess foram vendidas pela viúva a um comerciante de livros. A princesa Marie Bonaparte, amiga de Freud, soube da transação e comunicou ao autor das cartas.

princesa Marie Bonaparte
Princesa Marie Bonaparte

Temendo que chegassem ao conhecimento público, Freud confiou à Marie a tarefa de resgatar o lote de cartas. Com seus contatos por toda Europa, Marie conseguiu comprar o lote por 12 mil francos. Freud agradeceu: “nossa correspondência foi a mais intima que você possa imaginar. Seria altamente embaraçoso que viesse a cair nas mãos de estranhos. É uma extraordinária obra de amor que você tenha conseguido e livrado do perigo de vir a público. Não quero que nenhuma das cartas seja conhecida pela chamada posteridade”.

Marie contrariou o desejo de Freud e guardou o lote no Banco Rothschild em Viena em 1937. Com a expansão dos nazistas em Viena, a saga do lote de cartas atravessou fronteiras em transferência, de banco em banco, até chegarem intactas em Londres, para onde se refugiou Freud e sua família.

No vigor da idade, como indicou Aristóteles, a amizade estimula a prática de nobres ações, pois na companhia de amigos os homens são mais potentes para criar, agir e pensar. Freud, 31 anos e Fliess, 29 anos. Freud, recém-casado, inicia prática clínica como médico neurologista e ministra aulas como professor de neuropatologia na Universidade de Viena. Fliess foi a Viena em 1887 para estudar com Josef Breuer, amigo de Freud. Assim ocorreu o primeiro encontro. Breuer sugeriu a Fliess assistir as aulas de Freud. O laço de amizade produtor dos alicerces da psicanálise durou até 1904. Os efeitos do tempo em que os amigos viveram são eternos enquanto houver leitor interessado nas cartas que atestam, em parte, que Fliess foi o parteiro da psicanálise.

in: Jornal Cidade – Rio Claro/SP – 01/abril/2022 – Projeto Conhecimento para Todos

Os Amigos: Vincent e Theo van Gogh

Há amigos que são como irmãos, há irmãos que não são nada amigos. A rivalidade entre irmãos é tema cultural com substrato psíquico poderoso. Desde as narrativas mítico poéticas às mais sublimes criação literária contemporânea, o dualismo amor e ódio, amódio, entre irmãos deu o que falar. De Caim e Abel aos Irmãos Karamazov do escritor Dostoievski a rivalidade fraterna é um afeto humano transhistórico.

A Fortuna abençoou Vincent com o amor de seu irmão mais novo, Theo. Com a potência desse amor, Vincent enfrentou todas as adversidades para realizar seu gênio criador. O jovem Theo foi o único de toda família van Gogh que acreditou na bondade, generosidade e originalidade do irmão condenado a entrar na vida no lugar de um filho morto.

Batizado com o nome do irmão morto, Vincent não foi capaz de cumprir a missão impossível: ser o substituto de um objeto amado perdido. Nunca foi amado por sua mãe, pois não esteve à altura do ideal do morto.

Todo seu empenho em ser amado resultava sempre num fracasso e, de frustração em frustração, seguiu como um grande herói sua genialidade: o pintor das cores fortes, primárias, pastosas, volumosas. Figuras que ousam sair da tela; cenários que capturam o expectador incluindo-o na composição. As telas de Vincent são sensoriais e por isso mesmo, sensuais.

No conjunto, a correspondência entre os irmãos atesta o profundo laço amoroso e o impulso de vida que Theo representou para Vincent. Quando a narrativa do suicídio de Vincent tornou-se publica, Theo morreu pouco depois de completa tristeza e impotência por não ter conseguido salvar o irmão e dar a ele o reconhecimento de sua inventividade como pintor, o artista das cores.

Cartas a Théo é um testamento autobiográfico. Começam em Londres julho/1873 e percorre todo trajeto existencial do pintor até julho/1890: uma verdadeira epopeia para Vincent construir sua identidade como artista. Théo foi a única referência afetiva do pintor. Em cada carta, o retrato de um trabalho em construção. Na carta que tinha consigo no dia em que foi baleado, escreveu: “em meu próprio trabalho, arrisco a vida e nele minha razão arruinou-se em parte”.

Theo

As últimas palavras escritas, o epíteto final. Desde então, estabeleceu-se uma versão hegemônica: Vincent se suicidou com um tiro. Todos os biógrafos, partindo deste desfecho trágico, reconstruíram a trajetória da vida dilacerante deste homem: sua saga heroica no mundo da pintura moderna.

Nas duas últimas décadas, a narrativa do suicídio sofreu um duro ataque dos pesquisadores da vida e obra de Vincent. Nas centenas de cartas enviadas ao irmão Theo, não há nenhum registro que indique tendencias ou ideações suicidas. Há sim uma melancolia ativa, motivadora e impulsionadora do ato de criação. Não há uma melancolia passiva, uma tristeza embotada, nenhum niilismo ressentido.

Reconstruindo em minucias periciais o registro da bala que atingiu o tórax e o relado do jovem que no dia do disparo estava caçando passarinho, chegou-se à conclusão de que Vincent foi vítima de uma bala perdida. As duas premiadas produções cinematográficas recentes (Com Amor Van Gogh e No Portal da Eternidade) seguem essa outra narrativa biográfica do fim do amalucado pintor holandês de cabelo vermelho como um por de sol.

in: Jornal Cidade – Rio Claro/SP – janeiro/2022 – Projeto Conhecimento para Todos

Os amigos: Lou Salomé e Rainer Maria Rilke

Em 1895 Lou Andreas-Salomé decidiu por uma temporada em Viena depois de ter vivido na Itália, Paris e Berlim. Russa de nacionalidade, escritora por vocação, Salomé desembarcou na capital do império austro-húngaro trazendo na bagagem existencial um histórico de relações de amizades apaixonantes por vários países da Europa: o triangulo com Paul Rée e Friedrich Nietzsche deixou um rastro de inimizades e a decisão imperiosa de não renunciar o exercício da liberdade e seu desejo.

Esta mulher intensa, livre e movida por paixões, viveu sob o signo da amizade. Por onde passou envolveu-se em laços impulsionadores para sua criação literária e potencializou a criação dos que com ela se envolveram. Nos ensaios anteriores aqui publicados, apresentei o encontro de Lou com Nietzsche e com Freud. Hoje, narro o encontro de Lou com o Rilke, iniciante poeta.

Num jantar na residência de Jakob Wasserman em 12/maio/1897, Rilke foi apresentado à Lou, escritora com 36 anos. Ele a conhecia como autora do ensaio Jesus, o Judeu. O biografo do poeta descreveu o primeiro encontro: “Rilke compreendeu imediatamente que Lou era a mulher pela qual esperava. Para o jovem de 22 anos foi um encontro meteórico que mudou o curso de sua vida. Sua primeira paixão arrebatadora”.

O encontro foi decisivo para a viagem de Rilke à Florença: primeiro tempo de sua formação estética e estilística. Abril/1898, após chegar em solo italiano, iniciou o Diário de Florença. Além de um relato de viagem, o Diário é uma conversa prolongada com Lou Salomé, a quem dedica o livro. Tempos depois, reconhecendo o estado de apaixonamento em que se encontrava, assim se expressou: “mulher maravilhosa, como me engrandeceste. Porque se os dias na Itália me presentearam com tesouros, foste tu que criaste o espaço para recebê-los em minha alma, em que se debatiam os sonhos e numerosas angústias. Fizeste com que eu recuperasse a alegria”.

Após o jantar do primeiro encontro, Rilke convidou Lou para irem ao teatro assistirem peça Forças Obscuras e, desde então, o jovem começou a cortejar a mulher dos seus sonhos. De pronto, fez de Lou sua musa inspiradora. Em poucos meses estavam morando juntos como amantes numa casa rústica nos campos de Munique, ao lado de uma colina.

Na época, Lou era casada, juridicamente, com Friedrich Carl Andreas e não há muitos registros das circunstâncias que levaram Lou a decidir pelo casamento em 1887. O que ela mesma deixou escrito indica que não tinham uma vida sexual. Lou desejava viver sob o signo da amizade, o sexo era acidental.

No caso com Rilke o acidental aconteceu: Lou, na posição de amada, amou o amor devotado do jovem poeta. Amou reconhecer a potência criativa deste amor na poética daquele que veio a ser um dos maiores da língua alemã na arte literária, no conto e na poesia. De amiga a amante; de amante a amiga; Lou manteve longa correspondência com Rilke até o final da vida do poeta em 1926. Participou ativamente no trabalho de criação dos livros fundadores do estilo do poeta. De igual modo, os escritos de Rilke foram inspiradores para a criação das obras de Lou.

Lou foi instalada por Rilke na condição da musa, sua inspiração amorosa para criar. O incandescente amor, cantado em letras sublimes pelo poeta, foi vivido efetivamente com Salomé, a mulher mensageira de Eros, o enlaçador.

in: Jornal Cidade – Rio Claro/SP – dezembro/2021 – Projeto Conhecimento para Todos

fonte a imagem do cabeçalho: https://www.instagram.com/p/Crzzk7cugXQ/