Os Amigos: Vincent e Theo van Gogh

Há amigos que são como irmãos, há irmãos que não são nada amigos. A rivalidade entre irmãos é tema cultural com substrato psíquico poderoso. Desde as narrativas mítico poéticas às mais sublimes criação literária contemporânea, o dualismo amor e ódio, amódio, entre irmãos deu o que falar. De Caim e Abel aos Irmãos Karamazov do escritor Dostoievski a rivalidade fraterna é um afeto humano transhistórico.

A Fortuna abençoou Vincent com o amor de seu irmão mais novo, Theo. Com a potência desse amor, Vincent enfrentou todas as adversidades para realizar seu gênio criador. O jovem Theo foi o único de toda família van Gogh que acreditou na bondade, generosidade e originalidade do irmão condenado a entrar na vida no lugar de um filho morto.

Batizado com o nome do irmão morto, Vincent não foi capaz de cumprir a missão impossível: ser o substituto de um objeto amado perdido. Nunca foi amado por sua mãe, pois não esteve à altura do ideal do morto.

Todo seu empenho em ser amado resultava sempre num fracasso e, de frustração em frustração, seguiu como um grande herói sua genialidade: o pintor das cores fortes, primárias, pastosas, volumosas. Figuras que ousam sair da tela; cenários que capturam o expectador incluindo-o na composição. As telas de Vincent são sensoriais e por isso mesmo, sensuais.

No conjunto, a correspondência entre os irmãos atesta o profundo laço amoroso e o impulso de vida que Theo representou para Vincent. Quando a narrativa do suicídio de Vincent tornou-se publica, Theo morreu pouco depois de completa tristeza e impotência por não ter conseguido salvar o irmão e dar a ele o reconhecimento de sua inventividade como pintor, o artista das cores.

Cartas a Théo é um testamento autobiográfico. Começam em Londres julho/1873 e percorre todo trajeto existencial do pintor até julho/1890: uma verdadeira epopeia para Vincent construir sua identidade como artista. Théo foi a única referência afetiva do pintor. Em cada carta, o retrato de um trabalho em construção. Na carta que tinha consigo no dia em que foi baleado, escreveu: “em meu próprio trabalho, arrisco a vida e nele minha razão arruinou-se em parte”.

Theo

As últimas palavras escritas, o epíteto final. Desde então, estabeleceu-se uma versão hegemônica: Vincent se suicidou com um tiro. Todos os biógrafos, partindo deste desfecho trágico, reconstruíram a trajetória da vida dilacerante deste homem: sua saga heroica no mundo da pintura moderna.

Nas duas últimas décadas, a narrativa do suicídio sofreu um duro ataque dos pesquisadores da vida e obra de Vincent. Nas centenas de cartas enviadas ao irmão Theo, não há nenhum registro que indique tendencias ou ideações suicidas. Há sim uma melancolia ativa, motivadora e impulsionadora do ato de criação. Não há uma melancolia passiva, uma tristeza embotada, nenhum niilismo ressentido.

Reconstruindo em minucias periciais o registro da bala que atingiu o tórax e o relado do jovem que no dia do disparo estava caçando passarinho, chegou-se à conclusão de que Vincent foi vítima de uma bala perdida. As duas premiadas produções cinematográficas recentes (Com Amor Van Gogh e No Portal da Eternidade) seguem essa outra narrativa biográfica do fim do amalucado pintor holandês de cabelo vermelho como um por de sol.

in: Jornal Cidade – Rio Claro/SP – janeiro/2022 – Projeto Conhecimento para Todos