Os amigos: Dali e Lacan

Em 1926, o jovem catalão Salvador Dali, expulso da Escola de Belas Artes de Madri,  decidiu visitar Paris e Bruxelas em busca de interlocutores à altura de sua genialidade. O cenário artístico da capital francesa fora dinamitado pela revolução surrealista e, Dali encontrou nos militantes da causa surrealista a companhia tão desejada.

Salvador Dalí

De volta à Espanha, publicou o Manifesto Amarelo e, com Luis Buñuel, participou do processo de criação dos filmes Um Cão Andaluz e A Idade do Ouro. Retornou a Paris em 1929 e se apaixonou por Gala Éluard, esposa do poeta Paul Éluard. Formaram um triângulo amoroso com consequências decisivas para a criação artística de ambos.

No ensaio Novas Considerações Gerais Sobre o Mecanismo do Fenômeno Paranóico do Ponto de Vista Surrealista, publicado em 1933, Dalí descreveu os pressupostos do seu método de trabalho, nomeado paranoico-crítico: “o mecanismo paranoico, na perspectiva surrealista em que nos colocamos, é a prova do valor dialético desse princípio de verificação pelo qual passa praticamente no domínio tangível da ação o próprio elemento do delírio; é o penhor da vitória sensacional da atividade surrealista no campo do automatismo e do sonho”.

Jacques Lacan

Neste ensaio, encontra-se uma referência explícita à tese de doutoramento do jovem psiquiatra Jacques Lacan: Da Psicose Paranóica em suas Relações com a Personalidade. A tese do amigo Lacan serviu como ponto de sustentação das posições assumidas por Dalí: a defesa da irracionalidade concreta que emerge da atividade imaginativa, característica fundante do fenômeno paranoico.

“É da tese do Lacan que devemos fazer, pela primeira vez, uma ideia homogênea e total do fenômeno paranoico, fora das misérias mecanicistas em que se atola a psiquiatria corrente. A obra de Lacan dá conta perfeitamente da hiper acuidade objetiva e comunicável do fenômeno paranoico, graças à qual o delírio adquire esse caráter tangível e impossível de contradizer que o situa entre os próprios antípodas do automatismo e do sonho.”

Lacan aproximou-se dos surrealistas e encontrou em Dali um amigo com quem compartilhou a crítica da psiquiatria vigente e na estética do artista construiu seu estilo na leitura inicial dos escritos de Sigmund Freud. Fez assim sua entrada no campo da psicanálise, revolucionando a prática clínica e a interpretação de conceitos fundamentais da psicanálise. Na década de 1950, assumiu o protagonismo do movimento nomeado ‘retorno a Freud’, rompendo os padrões de leitura de Freud dominante e inscrevendo na história da psicanálise o mesmo que Dali fez na história da arte.

O encontro de Lacan com Dali nas noitadas de vinho nos cafés parisienses no início da década de 30, fez do jovem psiquiatra marcado pela questão da paranoia no tratamento da psicose um marco inaugural do que a história veio a conhecer como a Escola de Lacan: lugar de transmissão e da formação de psicanalistas comprometidos com a ética do bem dizer o desejo.

in: Jornal Cidade – Rio Claro/SP – 27/maio/2022 – Projeto Conhecimento para Todos