Aproveitando a onda, vamos surfar na polêmica em pauta nos meios de comunicação: os direitos autorais para comercialização de livros designados biografias. De um lado, um projeto de lei proposto pela Anel (Associação Nacional dos Editores de Livros) propõe alterar o artigo 20 do Código Civil brasileiro, também chamado de Lei das Biografias. De outro, a associação Procure Saber (formada por um grupo de artistas, autores e pessoas ligadas de algum modo a arte) que propõe uma reflexão sobre a questão pelo viés da autoria.
O autor da própria vida tem, atualmente, direito inalienável sobre seu nome próprio com o qual legitima e justifica sua existência temporal. Portanto, pode decidir se quer ou não tornar pública sua história privada e, se for uma figura pública, pode acionar a justiça para reparar danos à sua dignidade física e moral. A legislação brasileira protege todo e qualquer cidadão dando-lhe plenos direitos sobre sua história de vida. Tal como prescrito no código civil, “a vida privada é inviolável”. Cada um é o autor de sua própria história. Se quiser (ou não) escrevê-la e publicá-la é uma decisão de pleno direito. Seus herdeiros recebem, após sua morte, tal direito à autoria.
Na história da literatura e do pensamento os livros biográficos atravessam os interesses mercadológicos (não deixa de ser curioso o fato das editoras apoiarem a mudança na lei em vigor) para se alojarem no campo da vontade de saber, produtora da escrita. Como gênero literário é uma invenção recente: emergiu com ascensão da classe burguesa na modernidade. Na renascença os comerciantes registravam sua imagem na história através de encomenda aos pintores. O quadro Os Embaixadores, pintado por Hans Holbein em 1533, é um exemplo clássico de biografia por imagem.
O uso da escrita para retratar a história de uma vida talvez seja a forma mais primitiva de expressão que temos registro na história. Homero recolheu as narrativas dos heróis míticos e escreveu a história de Ulisses. Quando Platão escreveu a Apologia de Sócrates, estava marcado por uma vontade de saber o que disse seu mestre para se defender diante o tribunal de Atenas, acusado de corromper os jovens. Este texto de Platão é um dos primeiros relatos biográficos da cultura Ocidental. Tudo o que podemos saber sobre a vida de Sócrates decorre desta narrativa dialógica de Platão. Até porque, Sócrates nunca escreveu nada. Foi Platão, o jovem discípulo que se apropriou da vida (e da boca) do mestre, fazendo passar toda sua filosofia sobre a imortalidade da alma, a origem da virtude e as vantagens de um governo republicano aristocrático.
O encrenqueiro filósofo alemão Friedrich Nietzsche chegou a afirmar que Sócrates nunca existiu: ele foi um personagem inventado por Platão para nos fazer acreditar na distinção metafísica entre o bem e o mal. Quando o autor da própria vida decide tornar público sua história de vida, escreve uma autobiografia ou autoriza outrem a escrever sua biografia. Nietzsche, poucos meses antes de sofrer um colapso mental, tornou público em 1888 sua autobiografia: “Ecce Homo — como alguém se torna o que é”. Eis o Homem! É um livro que causa muito incômodo. Na 1ª parte apresentou as justificativas de sua vida: “Por que sou tão sábio”, “Por que sou tão inteligente” e “Por que escrevo tão bons livros”. O leitor apressado e para defender-se do incômodo, acrescentaria: “Por que sou tão soberbo”! Devagar. Observem que os títulos dos capítulos demonstram cada qual uma justificativa existencial; também, a distinção entre ser sábio e ser inteligente. Na 2ª parte apresentou um a um os seus filhos bem amados: os livros que escreveu. Desde o primogênito, O Nascimento da Tragédia, até os derradeiros O Caso Wagner e Crepúsculo dos Ídolos.
O que importa saber que em 10 de janeiro de 1889 foi conduzido de Turim para a Basiléia onde foi examinado em uma clínica psiquiátrica? Diagnóstico: paralisia progressiva de origem sifilítica — ao que tudo indica, contraída em um bordel nos tempos de juventude. A história de uma vida é uma ficção de si. O autor que escreve sua autobiografia faz de sua vida uma obra ficcional. O mesmo ocorre com quem escreve a biografia de outrem. A vontade de saber é seduzida pelo mito da verdade plena. Nietzsche, Freud e Lacan nos ensinaram que a verdade tem a estrutura da ficção.
Quer seja autobiografia ou biografia (autorizada ou não), os livros são peças ficcionais. Não aprecio muito este gênero literário. As poucas biografias que li estão direitamente ligadas aos autores com os quais trabalho. Gosto de textos autobiográficos por curiosidade literária. O Ecce Homo de Nietzsche é um verdadeiro testamento “auto-bio-biblio-gráfico”. Considero a chave de leitura para suas obras. Deixou claro: “uma coisa sou eu, outra são meus livros. Tomar em mãos um livro meu parece-me uma das mais raras distinções que alguém se pode conceder — suponho mesmo que tire as sandálias para fazê-lo, ou as botas”. Vida e obra são distintas e por isso pode haver relação: uma não elucida a outra, são alteridades radicais.
in: série “livros e lugares” – Caderno Cultura do Jornal de Piracicaba, 03/nov/2013