A vontade de saber: biografias (2)

O jovem polonês Arnold Zweig se tornou escritor lendo os livros de Nietzsche. Encontrou na filosofia trágica do Assim Falou Zaratustra os fundamentos literários da teoria do inconsciente formulada pelo neurologista Sigmund Freud, inventor da psicanálise. Iniciou uma correspondência com o médico vienense e tornaram-se amigos. Certa vez, Zweig se propôs a escrever a biografia de Freud e recebeu como resposta: “Quem quer que se torne biógrafo entrega-se à mentiras, ocultamentos, hipocrisia, embelezamentos, dissimulação de sua própria falta de compreensão, pois não se alcança a verdade biográfica e, mesmo que alguém a alcançasse, não poderia usá-la.”

 Em 1925, atendendo ao convite para participar de um livro-coletânea (A Medicina de Hoje por seus Representantes), Freud publicou sua autobiografia. De início, destacou a primeira exposição acadêmica de sua invenção nas conferências proferidas na Clark University, em Worcester, Massachusetts (USA). Em território americano, indicou seu ponto de partida: assumiu publicamente a autoria da psicanálise. Remetendo ao ensaio, “contribuições à história do movimento psicanalítico” (1914) retomou o fio de Ariadne de suas memórias e advertiu: ‘como não posso me contradizer nem gostaria de me repetir, devo procurar oferecer os elementos subjetivos e objetivo, os interesses biográfico e histórico”. O elemento subjetivo se alinha ao biográfico e o objetivo ao histórico. Com estes dois fios, teceu sua autobiografia.

Em 1908, o jovem neurologista inglês Alfred Ernest Jones procurou o Dr. Freud em Viena para iniciar sua formação psicanalítica. Deste encontro nasceu uma longa admiração mútua. Jones tornou-se amigo íntimo da família e o fundador da Sociedade Britânica de Psicanálise em 1919. Foi um dos responsáveis por acolher a família Freud, exilada em Londres durante a fuga da perseguição nazista. Em retribuição, Anna, a filha herdeira, autorizou Jones escrever a biografia do pai. Lançada no início da década 1950, Vida e Obra de Sigmund Freud foi saudada com um monumento para eternizar o autor da psicanálise: considero um arquivo fundamental para todas as outras que se seguiram. Nesta década também foi publicado a correspondência completa (1887 a 1904) de Freud com o amigo Wilhelm Fliess, médico otorrino de Berlim.

Cruzando estas duas fontes principais, o historiador norte-americano Peter Gay publicou em 1988 uma biografia de Freud que se tornou popular: Freud, uma Vida para o Nosso Tempo. Ao final do prefácio, afirmou: “não escrevi este livro para lisonjear nem para denunciar, mas para compreender. É certo que a vida de Freud assemelha-se, na superfície, às de muitos outros médicos extremamente cultos, inteligentes e ativos do século 19. Mas seu drama interior é suficientemente absorvente para atrair a infatigável atenção de qualquer biógrafo. Na famosa carta ao amigo Fliess, Freud se disse um conquistador. Este livro é a história de suas conquistas. Será revelado que a mais dramática dessas conquistas foi, embora incompleta, a de si mesmo”. A leitura da vida de Freud feita por Peter Gay está marcada por um culto ao herói conquistador. Daí decorre toda tradição de apresentar Freud como o Cristóvão Colombo do continente obscuro do inconsciente.

Outro retrato biográfico de Freud que escapa deste culto ao herói é o texto escrito pelos psicanalistas franceses René Major e Chantal Talagrand. Publicado em 2005 para homenagem aos 150 anos de nascimento de Freud, justificaram seu trabalho: “o problema apresentado ao biógrafo pela vida e pela obra de Freud, e por tudo o que se arquivou com esse nome há um século, não tem precedente algum na história. Quem fala de Freud, querendo ou não, sabendo ou não, exprime-se a partir das marcas deixadas em si próprio — em sua cultura, em sua maneira de pensar, em seu estilo — dos arquivos e registros existentes”.

O envolvimento subjetivo do biógrafo e de seu desejo de se apropriar (vontade de saber) de uma vida que não é a sua é entrelaçado na escrita. A escolha dos autores foi: “introduzir, junto ao homem Freud, o que poderíamos chamar de uma biografia analítica. Não no sentido de que ela analisaria o indivíduo que responde pelo nome Sigmund Freud. Mas no sentido de que o método freudiano mudaria a escrita da história, inclusive a escrita da história de Freud. Com o risco de desnortear o leitor, esta nova biografia não segue de modo algum a cronologia habitual”.

Com esta nova perspectiva, iniciaram o relato biográfico com a pergunta: Por que queimar Freud? Reportando-se à cena histórica de maio de 1933 — quando os jovens nazistas queimaram em praça publica os livros de Freud — os autores destacaram o auto-de-fé proclamado: “contra a exageração da vida pulsional que desagrega o espírito, pela nobreza da alma humana, eu jogo ao fogo os escritos de Sigmund Freud”. Quando soube desta cena, Freud escreveu com ironia: “Que progresso fizemos! Na Idade Média eles teriam queimado a mim; hoje, eles se contentam em queimar meus livros.”

in: série “livros e lugares” – Caderno Cultura do Jornal de Piracicaba, 10/nov/2013

ilustração: Erasmo