No fragmento atribuído a Heráclito encontra-se a mais bela definição de tempo: “O tempo é uma criança que brinca, movendo as pedras do jogo para lá e para cá; é governo de criança”. Instalada no instante presente, a criança não tem consciência do antes e do depois, do passado e do futuro. Seu tempo é o prazer obtido pelo ato de brincar. Considerando o princípio que rege a filosofia heraclitiana pode-se deduzir o valor simbólico da metáfora contida no fragmento. O tempo é um fluxo constante e ininterrupto, um vir-a-ser contínuo, o devir do ser: é puro acontecimento inscrevendo o movimento no qual todo o ser procura sustentar sua existência.
Estar no mundo é estar no tempo. O tempo é uma procissão de instantes entre o horizonte memorável do passado e as expectativas do futuro. Do passado só podemos relembrar para justificar o presente, dando-lhe sentido e significação. Do futuro, mantemos a ilusão de um controle, planejamento e previsibilidade. Quimera humana a sustentar nosso desamparo frente às contingências e circunstâncias que não dependem de nossa vontade. O futuro é um oceno de possibilidades governado pela deusa Fortuna à qual estamos submetidos. Podemos rememorar o passado e não podemos prever o futuro.
Na 2ª Consideração Extemporânea (Da Utilidade e Desvantagem da História para a Vida) Nietzsche afirmou: “Quem não se instala no limiar do instante, esquecendo todos os passados, quem não é capaz de manter-se sobre um ponto como uma deusa de vitória, sem vertigem e medo, nunca saberá o que é a felicidade e, pior ainda, nunca fará algo que torne outros felizes”. A consciência temporal se recusa a cumprir tal exigência. Em nós, o passado não passa e insistente nos convoca a relembrar como uma forma de nos manter ausentes do presente, deixá-lo em suspenso. Percebo, admitiu o filósofo alemão, que “nas experiências presentes estamos sempre ausentes: nelas não temos nosso coração, para elas não temos ouvidos”.
Ou nos apegamos ao passado como consolo e lamentação melancólica ou somos invadidos pela expectativa ansiosa em relação ao que o futuro nos reserva. Romper com essa relação de causalidade com o passado e previsibilidade com o futuro nos permite outra representação do tempo. Insere-nos numa rede de temporalidade onde o tempo presente gira entre o passado e futuro tal como uma espiral: em cada volta, o passado e o futuro se enlaçam no presente ampliando as possibilidades existenciais
Diferente do tempo cronológico da modernidade, o tempo mítico não é linear e contínuo. A característica fundamental do tempo mítico é a circularidade. Nele a cronologia é marcada pelos rituais de sagração das potências criadoras. No livro Mito e Metafísica, Georges Gusdorf descreveu o tempo mítico em sua dimensão comunitária, afirmando seu valor de um ordenamento, no sentido indivisivelmente regulador e imperativo do termo. “Significa para os humanos a sucessão de suas obrigações em relação ao sagrado, a intervenção sucesiva dos tempos, favoráveis e desfavoráveis, as permissões bem como interdições. Festas, comemorações, sacrifícios são outras tantas aberturas através das quais o tempo mítico chega à realidade humana para transfigurá-la. O calendário se transforma no encadeamento dos ritos e das observâncias. Por oposição ao tempo homogêneo e quantificado que nós conhecemos, o tempo mítico é um tempo qualitativo e circular”.
O calendário sempre apresenta o sagrado em expansão no tempo. “A função mediadora do calendário é dupla: ele é para o sagrado um meio de expressão e ao mesmo tempo ocupa uma condição profilática, assegurando a ordem humana em meio ao caos. Ele é a sucessão de festas religiosas que reinscreve o sagrado. Ele tem uma estrutura circular e periódica. Retorna sem cessar sobre si mesmo, os acontecimentos rituais que ele prevê já foram produzidos e tornarão a se reproduzir. Por isso, todo calendário tem o valor de uma liturgia do tempo, independente do contexto mítico-cultural no qual ele se inscreve. Morte e ressureição dos deuses, fundação das cidades, legenda e tradições, situam cada dia do ano em função de exigências que orientam em referência ao tempo mítico. Ele desempenha o papel de um gigantesco princípio de identidade aplicado à redução do diverso da existência humana”.
É no templo que o tempo mítico adquiriu forma e finalidade: nele a vida humana encontrou sua justificativa transcendental. O templo é o lugar primeiro da vida comunitária: as condições primevas de sociabilidade passam pelo templo. Ir ao templo é sair de um núcleo familiar fechado para integrar-se à vida em comum. Lugar de encontro e partilha da vida, o templo é o núcleo em torno do qual ocorrem as festas, a consagração da vida num ordenamento simbólico regido pelo sagrado.
“Tempo e o Templo (5)” – Caderno Cultura do Jornal de Piracicaba 20/jul/2014
ilustração: Erasmo Spadotto