O Tempo e o Templo (6)

Minha predileção em visitar templos em lugares por onde passo remonta ao tempo de criança: traços minêmicos de um passado que retorna com intensidade sensorial em cada igreja ou capela que conheço. Os templos contêm o tempo: memorial de cidades e da história da arquitetura, escultura e pintura. São verdadeiros museus, no sentido etimológico da palavra, templos das Musas.

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Sou o primeiro neto de avôs paterno descendentes de família italiana que chegaram ao Brasil fugindo da 1ª Guerra Mundial e foram trabalhar nas lavouras de café no noroeste paulista. Com a crise do café em 1929, muitos colonos foram obrigados a buscar trabalho em outras cidades da região. Instruído nas letras e nos números, ferreiro e carpinteiro, meu avô criou uma oficina onde fabricava charretes, facas, facões, enxadas e demais utensílios para a lavoura em São Sebastião dos Coqueiros, primeiro nome do vilarejo posteriormente nomeado município de Taquaritinga, terra das taquaras.

A cidade foi fundada em ato de doação de terras, lavrado em 1868, por Bernardino José Sampaio e demais morador da Fazenda Boa Vista do Ribeirão dos Porcos com o exclusivo propósito de “erigir uma capela dedicada ao vitorioso São Sebastião, com tanto que seja em lugar alto, livre de umidade e tenha espaço em roda para andar procissão”. Assim surgiu a paróquia de São Sebastião do Ribeirãozinho com a edificação da graciosa igreja com torre, estrutura e retábulo em madeira no estilo barroco, consagrada em 1908 ao mártir soldado romano convertido ao cristianismo.

Com o desenvolvimento econômico impulsionado pela estrada de ferro araraquarense, a pequena e modesta igreja se tornou incompatível com o crescimento populacional e os barões do café investiram na construção de nova matriz projetada numa área mais alta e nobre, recorrendo a um modelo arquitetônico neogotico francês, inspirado na Catedral São Pedro de Alcantara na cidade imperial de Petrópolis-RJ. O Santo padroeiro foi transferido para a nova igreja que é o cartão postal da cidade por seu valor estético e grandeza, proporcional a uma cidade interiorana.

A primeira igreja (carinhosamente chamada de antiga matriz) foi consagrada como Santuário de Nossa Senhora da Conceição Aparecida em 1946. Neste Santuário passei boa parte da minha infância. Meus avôs moravam próximo da igreja com ampla praça, abrigo para as atividades lúdicas das crianças do arredor. Além disso, minha avó era devota da imagem da Virgem Aparecida de quem tinha o mesmo nome. Em homenagem à sua mãe e à Virgem, meu pai me atribuiu Aparecido como segundo nome. Ela fazia parte de um grupo de mulheres que cuidavam do Santuário, inclusive realizando a limpeza da igreja. Como se aquele templo fosse à extensão de nossa casa, eu era seu acompanhante e ajudava nas tarefas. Também me levava consigo nas novenas e festas em louvor à padroeira do Brasil. Lembro-me bem de observar cada detalhe daquele lugar enquanto o tempo da reza transcorria.

Como também era costureira, minha avó tecia as roupas que vestiam as imagens de Nossa Senhora das Dores e de Nosso Senhor dos Passos. As imagens, esculpidas em tamanho natural e olhos envidraçados, possuem traços de sofrimento estampado no rosto com precisão impressionante: lágrimas e sangue a escorrerem pela face ornada com cabelos naturais. Outra imagem marcante é de Cristo morto num esquife em tamanho natural, localizado embaixo do altar-mor. O escultor imprimiu ao rosto de Cristo o mais aterrorizante semblante de morte que cheguei a conhecer. Recordo o pavor que sentia ao olhar para aquela imagem: meu corpo tremia e fechava os olhos quando tinha que passar diante dela.

Certamente, foi minha primeira representação física da morte: um estado de angústia infantil que ressurgiu com intensidade indescritível alguns anos depois no semblante do meu pai morto, vítima de um acidente de trânsito. O rosto do meu pai no esquife possuía os mesmos traços daquela imagem. De igual modo, lembro do sofrimento da minha avó paterna com o mesmo semblante de N.S.das Dores.

A construção da nova matriz teve início em 1923 e, com o declínio da cultura cafeeira, foi interrompida e retomada em 1944. O escultor italiano Ricardo Lucca, além de acompanhar a execução do projeto, é autor das cenas da via-sacra esculpidas em alto-relevo e dos capitéis ornamentado com frutas nativas. Além dos suntosos vitrais multicoloridos que refletem a lumunosidade natural, o templo possui 8 painéis narrando a vida de São Sebastião. Os afrescos são de autoria do casal Makk. Judeus de origem húngara, o casal fugiu da perseguição nazista na 2ª Guerra Mundial e aportaram em Santos de onde vagavam como nômades numa perua Kombi de cidade em cidade do oferecendo seus serviços artísticos às paróquias do interior paulista.

As cenas reproduzem personagens típicos de épicos do cinema na época (Ben-Hur, Os Dez Mandamentos, Cleópatra). O casal Makk utilizou figurinos destes filmes para compor a narrativa da vida do mártir romano. Essas cenas foram meu primeiro contato com a arte pictórica e, através delas, nasceu minha paixão pela pintura. No templo de São Sebastião se realizou minha formação inicial no campo das artes: primeira escola onde aprendi o valor da estética para a vida.