O Tempo e o Templo (4)

o-tempo-e-o-templo-4Nos períodos de governo do rei Salomão e do rei Davi surgiram os primeiros escritos que compõem a Bíblia Sagrada de Jerusalém. O Pentateuco (narrativa da gênese da cultura judaica) é um composto das duas principais versões de escribas contratados pelos reis para reunir a narrativa mítica sobre a origem do cosmo e de tudo o que nele existe. Até então, as narrativas da criação eram transmitidas oralmente no templo. O tempo da criação e a história do povo israelita passaram à escrita por volta do século 10 a.C. e assim iniciou-se a narrativa conhecida e consagrada pela tradição judaico-cristã.

Quando estudava Teologia, o professor de exegese bíblica nos ensinava a identificar no Antigo Testamento e em especial no livro do Gênesis, a tradição “javista” (os que nomeavam Deus como Iahweh) e a tradição “eloísta” (designam Deus como Elohim). Para tanto, o exercício consistia em pintar cada versão com uma cor e depois realizar a leitura. Realizava-se assim um trabalho de desconstrução do texto a fim de visualizar as diferentes narrativas de diferentes tribos do Norte e do Sul da Palestina. Esse gesto deixou marcas em minha formação, pois permitiu compreender que em todo texto (sagrado ou não) há um contexto histórico.

No tempo e no templo edificado por Salomão para consagrar a divindade criadora, o povo de Israel encontrou sua identidade. Quer seja nomeado como Elohim ou Iahweh, Deus é venerado como princípio de toda criação. Assim foi possível inscrever no tempo da criação, a gênese, origem da própria temporalidade.

Conclui o artigo de domingo passado afirmando que o templo é o memorial do tempo: no templo, a história adquiriu sentido e significação. Nele o tempo é ritualizado.

Todo Antigo Testamento é atravessado pela relação indissociável entre o tempo e o templo. Na Introdução ao Pentateuco da Bíblia de Jerusalém (Ed. Paulinas), o autor destaca um fato importante. “Apesar dos traços que os distinguem, os relatos javista e eloísta contam substancialmente a mesma história: essas duas tradições têm, pois, uma origem comum. Os grupos do Sul e os do Norte partilhavam uma mesma tradição, que colocava em ordem as recordações do povo sobre sua história: a sucessão dos 3 Patriarcas (Abraão, Isaac e Jacó), a libertação do povo com a saída Egito unida à teofania (a revelação de Deus) no monte Sinai, a conclusão da Aliança no Sinai ligada à instalação na Transjordânia, última etapa antes da conquista da Terra Prometida. Essa tradição comum se constitui, sob a forma escrita, desde a época dos Juízes, isto é, quando Israel começou a existir como um povo”.

Os 11 capítulos iniciais do Gênesis descrevem com muita precisão o elemento universalizante da consciência mítica como estrutura do ser no mundo. Com uma linguagem figurativa (ou imagética) instauram um princípio divino para narrar a criação do mundo como ordenamento (cosmo) no caos. Neste aspecto, a narrativa encontra equivalência na Teogonia escrita por Hesíodo, poeta grego que instaurou a genealogia dos deuses e a batalha pela conquista do Olimpo. A diferença fundamental está no fato do povo israelita depositar sua crença num único Deus, criador e princípio do tempo histórico.

O Novo Testamento é marcado pela presença de Deus revelada pela boa nova (Evangelho) encarnada na figura histórica de Jesus, o Cristo. Ele se apresenta e é reconhecido como o filho de Deus. A trajetória de seus atos e palavras foi documentada pela escrita dos 4 evangelistas: Mateus, Marcos, Lucas e João. Em cada um é possível encontrar a relação de Jesus com o templo: relação tensa e conflituosa, pois a principal característica de Jesus é fazer sua pregação fora do templo. Lucas, por exemplo, narrou a apresentação do menino Jesus no templo por seus pais; noutra ocasião, com 12 anos, na festa da Páscoa, seus pais o encontraram no templo: “sentado em meio aos doutores, ouvindo-os e interrogando-os; e todos os que o ouviam ficavam extasiados com sua inteligência e as suas respostas”.

Nesta relação de Jesus com o templo, destaco um aspecto que considero revolucionário para o seu tempo: pelo batismo, cada corpo passa ser um templo. O corpo, em sua singularidade, é a morada de Deus. O corpo como templo: mensagem transgressora decisiva para que Martinho Lutero pudesse instaurar a Reforma Protestante no alvorecer da Idade Moderna. É pela reinscrição da boa nova, numa espécie de retorno do recalcado, realizada por Lutero que a modernidade pôde ser definida como princípio de individualização.

Cada ser humano (cristão ou não), em sua corporiedade, é um templo. Verdadeira consagração do corpo como divino. Se cada um pudesse respeitar, seu próprio corpo e de seus semelhantes, como templo viveríamos outro tempo. Um tempo em que o cuidado de si pudesse adquirir o estatuto de um exercício espiritual. Pois, de nada adianta ir ao templo para pedir, em oração, saúde e proteção, se na prática cotidiana tratamos nosso corpo (e dos outros) como objeto descartável: mera mercadoria.

“Tempo e o Templo (4)” – Caderno Cultura do Jornal de Piracicaba 13/jul/2014

ilustração: Erasmo Spadotto