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Os amigos: Freud e Fliess
O amor entre amigos era nomeado philia pelos gregos. O verbo philéo designa amar com amizade, tratar como amigo, amar no princípio da igualdade, reconhecendo no outro os valores que lhe são correspondentes; o amor que põem em relação esse princípio.
Aristóteles dedicou o livro 8 da Ética ao tema da amizade, destacando-a como uma virtude importante para a vida: “Porque sem amigos ninguém escolheria viver, ainda que possuísse todos os outros bens. Amizade ajuda os jovens e aos velhos; aos que estão no vigor da idade, ela estimula a prática de nobres ações, pois na companhia de amigos os homens são mais potentes para criar, agir e pensar”
Desde os anos de juventude, Sigmund Freud buscava um amigo com quem pudesse viver sob o signo da philia. Ao longo da vida plena em realizações, Freud esteve na companhia de grandes amigos, homens e mulheres. A vasta correspondência com seus amigos está sob domínio público como registro da história da amizade.
Na série publicada neste matutino, narrei a philia de Freud com Sandor Ferenczi e com Lou Salomé. Hoje apresento o amigo Wilhelm Fliess, médico otorrinolaringologista de Berlim. A Correspondência Completa (1887-1904), traduzida no Brasil em 1986, é um precioso arquivo para acompanhar a potência criativa da teoria psicanalítica.
As circunstâncias que tornaram públicas as cartas de Freud ao amigo Fliess é um capítulo importante na história dessa amizade e na história da psicanálise. No término da amizade, as cartas de Fliess à Freud foram destruídas, uma a uma, no fogo da lareira. Levou tempo para Freud elaborar os efeitos desta ruptura. As cartas de Freud a Fliess foram vendidas pela viúva a um comerciante de livros. A princesa Marie Bonaparte, amiga de Freud, soube da transação e comunicou ao autor das cartas.
Temendo que chegassem ao conhecimento público, Freud confiou à Marie a tarefa de resgatar o lote de cartas. Com seus contatos por toda Europa, Marie conseguiu comprar o lote por 12 mil francos. Freud agradeceu: “nossa correspondência foi a mais intima que você possa imaginar. Seria altamente embaraçoso que viesse a cair nas mãos de estranhos. É uma extraordinária obra de amor que você tenha conseguido e livrado do perigo de vir a público. Não quero que nenhuma das cartas seja conhecida pela chamada posteridade”.
Marie contrariou o desejo de Freud e guardou o lote no Banco Rothschild em Viena em 1937. Com a expansão dos nazistas em Viena, a saga do lote de cartas atravessou fronteiras em transferência, de banco em banco, até chegarem intactas em Londres, para onde se refugiou Freud e sua família.
No vigor da idade, como indicou Aristóteles, a amizade estimula a prática de nobres ações, pois na companhia de amigos os homens são mais potentes para criar, agir e pensar. Freud, 31 anos e Fliess, 29 anos. Freud, recém-casado, inicia prática clínica como médico neurologista e ministra aulas como professor de neuropatologia na Universidade de Viena. Fliess foi a Viena em 1887 para estudar com Josef Breuer, amigo de Freud. Assim ocorreu o primeiro encontro. Breuer sugeriu a Fliess assistir as aulas de Freud. O laço de amizade produtor dos alicerces da psicanálise durou até 1904. Os efeitos do tempo em que os amigos viveram são eternos enquanto houver leitor interessado nas cartas que atestam, em parte, que Fliess foi o parteiro da psicanálise.
in: Jornal Cidade – Rio Claro/SP – 01/abril/2022 – Projeto Conhecimento para Todos
Os Amigos: Vincent e Theo van Gogh
Há amigos que são como irmãos, há irmãos que não são nada amigos. A rivalidade entre irmãos é tema cultural com substrato psíquico poderoso. Desde as narrativas mítico poéticas às mais sublimes criação literária contemporânea, o dualismo amor e ódio, amódio, entre irmãos deu o que falar. De Caim e Abel aos Irmãos Karamazov do escritor Dostoievski a rivalidade fraterna é um afeto humano transhistórico.
A Fortuna abençoou Vincent com o amor de seu irmão mais novo, Theo. Com a potência desse amor, Vincent enfrentou todas as adversidades para realizar seu gênio criador. O jovem Theo foi o único de toda família van Gogh que acreditou na bondade, generosidade e originalidade do irmão condenado a entrar na vida no lugar de um filho morto.
Batizado com o nome do irmão morto, Vincent não foi capaz de cumprir a missão impossível: ser o substituto de um objeto amado perdido. Nunca foi amado por sua mãe, pois não esteve à altura do ideal do morto.
Todo seu empenho em ser amado resultava sempre num fracasso e, de frustração em frustração, seguiu como um grande herói sua genialidade: o pintor das cores fortes, primárias, pastosas, volumosas. Figuras que ousam sair da tela; cenários que capturam o expectador incluindo-o na composição. As telas de Vincent são sensoriais e por isso mesmo, sensuais.
No conjunto, a correspondência entre os irmãos atesta o profundo laço amoroso e o impulso de vida que Theo representou para Vincent. Quando a narrativa do suicídio de Vincent tornou-se publica, Theo morreu pouco depois de completa tristeza e impotência por não ter conseguido salvar o irmão e dar a ele o reconhecimento de sua inventividade como pintor, o artista das cores.
Cartas a Théo é um testamento autobiográfico. Começam em Londres julho/1873 e percorre todo trajeto existencial do pintor até julho/1890: uma verdadeira epopeia para Vincent construir sua identidade como artista. Théo foi a única referência afetiva do pintor. Em cada carta, o retrato de um trabalho em construção. Na carta que tinha consigo no dia em que foi baleado, escreveu: “em meu próprio trabalho, arrisco a vida e nele minha razão arruinou-se em parte”.
As últimas palavras escritas, o epíteto final. Desde então, estabeleceu-se uma versão hegemônica: Vincent se suicidou com um tiro. Todos os biógrafos, partindo deste desfecho trágico, reconstruíram a trajetória da vida dilacerante deste homem: sua saga heroica no mundo da pintura moderna.
Nas duas últimas décadas, a narrativa do suicídio sofreu um duro ataque dos pesquisadores da vida e obra de Vincent. Nas centenas de cartas enviadas ao irmão Theo, não há nenhum registro que indique tendencias ou ideações suicidas. Há sim uma melancolia ativa, motivadora e impulsionadora do ato de criação. Não há uma melancolia passiva, uma tristeza embotada, nenhum niilismo ressentido.
Reconstruindo em minucias periciais o registro da bala que atingiu o tórax e o relado do jovem que no dia do disparo estava caçando passarinho, chegou-se à conclusão de que Vincent foi vítima de uma bala perdida. As duas premiadas produções cinematográficas recentes (Com Amor Van Gogh e No Portal da Eternidade) seguem essa outra narrativa biográfica do fim do amalucado pintor holandês de cabelo vermelho como um por de sol.
in: Jornal Cidade – Rio Claro/SP – janeiro/2022 – Projeto Conhecimento para Todos
Os amigos: Lou Salomé e Rainer Maria Rilke
Em 1895 Lou Andreas-Salomé decidiu por uma temporada em Viena depois de ter vivido na Itália, Paris e Berlim. Russa de nacionalidade, escritora por vocação, Salomé desembarcou na capital do império austro-húngaro trazendo na bagagem existencial um histórico de relações de amizades apaixonantes por vários países da Europa: o triangulo com Paul Rée e Friedrich Nietzsche deixou um rastro de inimizades e a decisão imperiosa de não renunciar o exercício da liberdade e seu desejo.
Esta mulher intensa, livre e movida por paixões, viveu sob o signo da amizade. Por onde passou envolveu-se em laços impulsionadores para sua criação literária e potencializou a criação dos que com ela se envolveram. Nos ensaios anteriores aqui publicados, apresentei o encontro de Lou com Nietzsche e com Freud. Hoje, narro o encontro de Lou com o Rilke, iniciante poeta.
Num jantar na residência de Jakob Wasserman em 12/maio/1897, Rilke foi apresentado à Lou, escritora com 36 anos. Ele a conhecia como autora do ensaio Jesus, o Judeu. O biografo do poeta descreveu o primeiro encontro: “Rilke compreendeu imediatamente que Lou era a mulher pela qual esperava. Para o jovem de 22 anos foi um encontro meteórico que mudou o curso de sua vida. Sua primeira paixão arrebatadora”.
O encontro foi decisivo para a viagem de Rilke à Florença: primeiro tempo de sua formação estética e estilística. Abril/1898, após chegar em solo italiano, iniciou o Diário de Florença. Além de um relato de viagem, o Diário é uma conversa prolongada com Lou Salomé, a quem dedica o livro. Tempos depois, reconhecendo o estado de apaixonamento em que se encontrava, assim se expressou: “mulher maravilhosa, como me engrandeceste. Porque se os dias na Itália me presentearam com tesouros, foste tu que criaste o espaço para recebê-los em minha alma, em que se debatiam os sonhos e numerosas angústias. Fizeste com que eu recuperasse a alegria”.
Após o jantar do primeiro encontro, Rilke convidou Lou para irem ao teatro assistirem peça Forças Obscuras e, desde então, o jovem começou a cortejar a mulher dos seus sonhos. De pronto, fez de Lou sua musa inspiradora. Em poucos meses estavam morando juntos como amantes numa casa rústica nos campos de Munique, ao lado de uma colina.
Na época, Lou era casada, juridicamente, com Friedrich Carl Andreas e não há muitos registros das circunstâncias que levaram Lou a decidir pelo casamento em 1887. O que ela mesma deixou escrito indica que não tinham uma vida sexual. Lou desejava viver sob o signo da amizade, o sexo era acidental.
No caso com Rilke o acidental aconteceu: Lou, na posição de amada, amou o amor devotado do jovem poeta. Amou reconhecer a potência criativa deste amor na poética daquele que veio a ser um dos maiores da língua alemã na arte literária, no conto e na poesia. De amiga a amante; de amante a amiga; Lou manteve longa correspondência com Rilke até o final da vida do poeta em 1926. Participou ativamente no trabalho de criação dos livros fundadores do estilo do poeta. De igual modo, os escritos de Rilke foram inspiradores para a criação das obras de Lou.
Lou foi instalada por Rilke na condição da musa, sua inspiração amorosa para criar. O incandescente amor, cantado em letras sublimes pelo poeta, foi vivido efetivamente com Salomé, a mulher mensageira de Eros, o enlaçador.
in: Jornal Cidade – Rio Claro/SP – dezembro/2021 – Projeto Conhecimento para Todos
fonte a imagem do cabeçalho: https://www.instagram.com/p/Crzzk7cugXQ/
Os amigos: Lou Salomé, Nietzsche & Paul Rée
No episódio anterior, narrei o encontro de Lou Andreas-Salomé com Sigmund Freud. Hoje destaco o primeiro encontro de Lou com Friedrich Nietzsche em abril/1882 nas escadarias da Basílica de São Pedro em Roma. Com olhar penetrante, Nietzsche lançou, num olhar de águia, a pergunta derradeira: “De que estrelas caímos um ao encontro do outro?”
O encontro foi previamente construído pela mediação de Paul Rée e Malwida von Meysenbug. Em 1880, com 19 anos, a russa Lou decide ingressar na Universidade de Zurique para estudar filosofia e ser escritora. Com diagnóstico de tuberculose, os médicos prescrevem uma viagem à Itália. Malwida, amiga da família, aceita recebê-la em sua residência em Roma.
Mulher exemplar do cosmopolitismo e do liberalismo cultural do século 19, Malwida foi pioneira nos movimentos de emancipação feminina, presença marcante na ação política, refugiou-se na Itália para não ser encarcerada. Em Londres/1855 se tornou amiga de Richard Wagner e, através do músico, conheceu Nietzsche.
Paul Rée conheceu Nietzsche em 1873 e o vínculo de amizade foi instantâneo. Malwida convidou Nietzsche para uma temporada em Sorrento. Ele pede autorização para convidar o amigo Rée. Neste encontro no sul da Itália, “monastério dos espíritos livres”, surgiram os melhores livros do filósofo trágico: Humano, Demasiado Humano; Aurora; A Gaia Ciência.
Quando Lou chegou em Roma, seis anos depois da aventura dos “amigos de Sorrento”, os laços estavam esgarçados. Nietzsche rompeu com Wagner. Malwida tomou partido de Wagner. Nietzsche se revolta. Com Paul Rée encontrou as aventuras de um espírito livre. Lou encontrou na relação e formou a vértice do triangulo amoroso mais produtivo que conheço.
Os dias em Roma deu o tom da intensidade no verão em Tautenburg na Turingia. Foi lá que Nietzsche pediu Lou em casamento. Ela, com delicadeza felina, recusou e insistiu na amizade sem vínculo sexual. Lou estava empenhada em demonstrar, pela própria experiência, a possibilidade do laço amoroso entre amigos homens e mulheres. Aliança tríplice mantida num equilíbrio de forças dionisíacas. Lou se apaixonou por Rée, abandonam Nietzsche e foram morar juntos em Berlim.
Depois do vivido em Tautenburg, no tríplice enlaçamento amoroso, Nietsche escreveu (dezembro/1882) a Franz Overbeck: “agora estou inteiramente só diante da minha tarefa. Preciso de um baluarte contra o mais insuportável de tudo o que vivi”. Nos dias seguintes redigiu a primeira parte do Assim Falou Zaratustra.
Lou foi depositária das potencias dionisíacas de Nietzsche. Nela encontrou sua musa, fonte de inspiração. O deslocamento dessa força amorosa para a escrita do Zaratustra foi decisivo para reconhecer, no primeiro encontro na Basílica, o prenuncio da criação filosófica e literária de cada um dos enlaçados na experiência amorosa.
Nietzsche escreveu o Zaratustra. Lou escreveu seu primeiro livro, Combate por Deus, e o pensamento trágico de Nietzsche. Paul Reé precipitou-se [acidente ou suicídio?] numa caminhada pelos Alpes suíços e é conhecido na história como amigo de Nietzsche e amante de Lou Salomé.
in: Jornal Cidade – Rio Claro/SP – 15/outubro/2021 – Projeto Conhecimento para Todos