O Tempo e o Templo (3)

Com frequência sou interrogado se acredito em Deus. Sim, acredito em Deus, em Zeus, Poseidon, Apolo, Dionísio, Afrodite, Diana, Adonis, Oxalá, Oxossi, Xango e Iemanjá. Minha crença é politeísta e atribuo o valor de sagrado aos livros fundadores da consciência mítica como a primeira forma de representação que os humanos foram e são capazes de inventar para dar continência à angústia do desamparo diante da morte.

A consciência de saber-se mortal é o peso do real insuportável sem um anteparo simbólico. Angústia de saber-se finito encontra na crença em divindades um suporte, uma borda. O tempo finito da existência precisa ser eternizado de um algum modo e os deuses servem justamente para nos ajudar a suportar o inefável, o provisório, o imprevisto, o inexplicável e o indizível. Diante da eternidade dos deuses, amparamos nossa finitude.

Também acredito nos santos, tal como creio nos heróis que de um modo ou de outro empenharam cada um a sua existência para sustentar uma crença e um valor que pudesse atribuir sentido e significação às suas vidas. Por isso devem ser louvados e admirados. Todo ser que devota seu tempo de vida a uma causa que considera nobre é digno de louvor. O herói ou santo é quem encarna o seu tempo e o transcende.

De igual modo acredito no céu e no inferno. No céu porque espero que seja a morada daqueles que amei e amo em vida e; no inferno, para ter um lugar onde possa mandar aqueles a quem não tenho apreço.

No que diz respeito aos livros, a Ilíada e a Odisséia de Homero ou a Teogonia de Hesíodo tem para mim o mesmo estatuto sagrado que a Bíblia para os cristãos ou o Alcorão para os muçulmanos. Aprendi o caráter sagrado dos livros quando na adolescência me encontrei com as Memórias de Adriano narrada por Marguerite Yourcenar.  A escrita deste célebre livro se assemelha a um templo, uma suntuosa catedral. Na figura do Imperador Romano, a autora construiu o que de mais belo conheço do que se poderia chamar de humanismo.  Neste livro encontrei uma espécie de consagração de todos os demais livros que se tornaram sagrados para mim. Através dele estabeleci meu critério para eleger um livro e seu significado para minha existência.

“Como toda gente, não disponho senão de três meios para avaliar a existência humana: o estudo de si mesmo, o mais difícil e mais perigoso, mas também o mais fecundo dos métodos; a observação dos seres humanos, que se arranjam frequentemente para ocultar-nos seus segredos ou por nos fazer crer que os têm; os livros, com os erros peculiares de perspectiva que surgem entre suas linhas. Os poetas transportam-nos a um mundo mais vasto ou mais belo, mais ardente ou mais suave, por isso mesmo diferente do nosso e, na prática, quase inabitável. Os filósofos, a fim de estudarem a realidade pura, submetem-na quase às mesmas transformações que o fogo ou o pilão operam nos corpos. Os historiadores apresentam-nos as imagens do passado através de sistemas excessivamente complexos, com uma série de causas e efeitos demasiado exatos e claros para serem inteiramente verídicos. Dificilmente conseguiria viver num mundo sem livros, mas a realidade não esta ali porque eles não a contêm por inteira. Na verdade, o espírito humano reluta em se aceitar como obra do acaso e a não ser senão o produto fortuito do imprevisto ao qual nenhum deus preside, nem mesmo ele próprio”

Tenho predileção em visitar templos. Minha relação com o espaço sagrado é sensorial: gosto dos cheiros, do som do silêncio e observo os detalhes, desde o piso até o teto passando pelas paredes e janelas. Procuro sempre um guia informativo sobre a história da construção e dou preferência àqueles que não estão nos roteiros oficiais de turista. Tanto faz se é uma catedral exuberante como uma simples capela. Já visitei ruínas de templos ancestrais bem como uma frondosa árvore utilizada como templo pelos africanos em seus cultos aos orixás. Tenho equivalência de valor entre um baobá com mais de 350 anos e 15m de circunferência na Vila de Nossa Senhora do Ó em Ipojuca (povoado ao sul de Recife) e a Catedral de Notre-Dame em Paris.

Os templos contem o tempo: nele pode-se reconhecer a história de uma cidade. Aliás, toda vila, povoado ou cidade se construiu no entorno de um templo. Nele está contido a história da arte e da arquitetura, do conjunto de crenças que tornam o bicho falante, um ser humano. Só existe templo e tempo para os humanos. Parafraseando o filósofo materialista Ludwig Feuerbach, os humanos criaram os deuses à sua imagem e semelhança. E criaram templos para que seus deuses pudessem ser venerados, cultuados através da ritualização do tempo e assim inscrevê-lo na memória. O templo é o memorial do tempo.

“Tempo e o Templo (3)” – Caderno Cultura do Jornal de Piracicaba 06/jul/2014

ilustração: Erasmo Spadotto