Freud & Ferenczi na Sicília – 3

Após o primeiro encontro em janeiro/1908, a inclusão de Sándor Ferenczi no círculo familiar de Sigmund Freud foi imediata. Juntos passaram as férias de verão na região de montanhas, celebraram o natal na casa de Freud em Viena e atravessaram o Atlântico com destino à América no outono/1909. No ano seguinte, embarcaram rumo ao sul da Itália, onde viveram a experiência decisiva da longa e assimétrica amizade.

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Através do conjunto de cartas que compõem os volumes da Correspondência Freud & Ferenczi é possível reconstruir a gênese desta relação até a viagem que empreenderam à Sicília. A viagem que fizeram aos EUA, antecipa o embate vivido em solo italiano.

Na carta saudação de Ano Novo de 1909, há a primeira menção ao convite que o reitor da Clark University de Worcester (Massachusetts) fez a Freud para um ciclo de cinco conferências por ocasião do 20º aniversário de sua fundação.  Transcorreram alguns meses para se definir os termos da viagem e quem assumiria os custos.

Desde o convite, Freud já havia incluído Ferenczi como companheiro. “Da América, não tive mais notícias; não acredito que irão aceitar o valor que cobrei. Temo os pudores do novo continente. Se aceitarem, já estou dando como certa a sua companhia”, escreveu ao colega médico de Budapeste.

A princípio, o convite dos americanos implicava a Freud assumir as despesas da viagem: “A exigência de sacrificar tanto dinheiro para ir dar palestra na América é demais para mim. São os americanos que devem dar e não extrair dinheiro de nós. Aliás, em breve, assim que descobrirem o fundamento sexual de nossa psicologia, irão falar mal de nós”, reclamou Freud noutra carta.

Enfim, Stanley Hall, reitor da Universidade, conseguiu angariar, junto aos empresários de Boston, o dinheiro necessário para cumprir as exigências de Freud. Em agosto/1909, embarcaram no porto de Bremerharven, no navio George Washington, com destino à New York. O desejo de Freud inicialmente era viajar até América pelo mar Mediterrâneo, saindo do porto de Trieste com escala em Palermo. Porém, a demora na definição da verba para a viagem, fez com que não encontrasse mais lugar no navio que fazia esse roteiro.

Ao aterrissar em solo americano, Freud teria confidenciado a seus companheiros de viagem, Ferenczi e Gustav Jung: “Eles ficarão surpresos quando souberem o que temos a lhes dizer. Nem se quer desconfiam que estamos trazendo a peste”. Publicado posteriormente como Cinco Lições de Psicanálise, as conferências americanas preservam um vigor impressionante mais de um século depois.

Na saudação inicial, Freud destacou ser a primeira vez que lhe foi permitido falar publicamente sobre psicanálise num ambiente acadêmico. E, para sua maior surpresa, afirmou ter encontrado pessoas sem preconceito e com conhecimento da literatura psicanalítica.  Acrescentou: “Na América puritana, pode-se, pelo menos nos círculos acadêmicos, discutir livremente e tratar cientificamente tudo o que é encarado como impróprio na vida comum”.

Uma década depois, relembrando a viagem, afirmou que as honras recebidas do seu auditório americano tinham grande significado: “Na Europa, eu me sentia como alguém excomungado; ali, em solo americano, eu me vi acolhido pelos melhores pensadores liberais como igual. O momento em que subi ao atril em Worcester para falar sobre minha invenção foi a realização de um sonho inimaginável”. O reconhecimento não obtido entre seus pares europeus foi conquistado por seus ímpares americanos.

Iniciou a primeira conferência dizendo do grande prazer em expor a história da psicanálise para um público formado, em sua maioria, por pessoas que não pertenciam à classe médica, chamados leigos. “Acreditem, não é necessária uma especial cultura médica para acompanhar minha exposição. Caminharemos por algum tempo ao lado dos médicos, mas logo deles nos afastaremos para seguir uma rota absolutamente original”. Ao inventar a psicanálise, Freud criou novo caminho para o tratamento do sofrimento psíquico e a teorização desta prática.

No retorno da América, Freud & Ferenczi foram consultar Madame Seidler em Hamburgo. Médium e vidente, a tal Madame, por ironia do destino, nomeou o estado de tensão atuante na relação. Sob o argumento de pesquisadores dos fenômenos parapsicológicos, os dois amigos consultaram espécie de pitonisa, sacerdotisa do templo de Apolo. Deste evento emblemático nasceu o ensaio Psicanálise e Telepatia, escrito por Freud uma década depois.

Livros e Lugares – Caderno de Domingo – Jornal de Piracicaba – 24/mai/2015