Fricassê em Avignon: uma recordação gastronômica

Cozinhar é o mais privado e arriscado ato. No alimento se coloca ternura ou ódio. Na panela se verte tempero ou veneno. Cozinhar não é serviço, é um modo de amar os outros. (Mia Couto)

 arraso boa comida

Há em cada um de nós uma memória gastronômica composta de cheiros, cores, sabores e afetos. Remotas recordações de comidas aparecem com grande frequência no tempo presente e ao longo de nossa existência. Dona Cida, minha amada avó paterna, chegou aos 80 anos sem memória do presente e lúcida do passado. Não reconhecia mais as pessoas queridas e no entanto contava histórias da cozinha de sua infância.

Foi com ela que me apaixonei pela arte culinária. Sua delicadeza na cozinha era regrada pelo generoso ato de alimentar sua família. Fazia mágica com os ingredientes disponíveis no pequeno quintal: aves, legumes e temperos. A polenta com frango ensopado era um manjar dos deuses.

Com o tempo fui ampliando meu saber gastronômico e exercitando alguma habilidade na pilotagem do fogão. Às vezes me arrisco a elaborar receitas mais complexas e tenho grande prazer em alterá-las para criar um toque singular e ofertar àqueles que amo.

No campo filosófico, adquiri predileção por autores que escreveram sobre a alimentação como ato de amor e liberdade de comunicação. Friedrich Nietzsche, por exemplo, é um deles. No seu livro-testamento, “Ecce Homo: como alguém se torna o que é”, afirmou que a salvação da humanidade dependia da questão da alimentação muito mais do que de todos os tratados filosóficos e teológicos:

“Uma refeição forte é mais fácil de digerir do que uma demasiado ligeira. Que o estômago entre inteiro em atividade, primeira condição para uma boa digestão. Deve-se conhecer o tamanho do próprio estômago. Ficar sentado o menor tempo possível; não dar crédito a um pensamento que não nasceu ao ar livre, de movimentos livres – no qual também os músculos festejem. Todos os preconceitos vêm das vísceras. A vida sedentária é o verdadeiro pecado contra o santo espírito”.

Para potencializar sua vontade de viver o ser humano precisa ter garantido as condições básicas de alimentação diária. Posto isso como premissa, a arte gastronômica exige um mais além da necessidade de saciar a fome. Requer um trabalho de cultivo dos prazeres relativos ao ato de alimentação. Comer é mais do que satisfazer uma necessidade vital. É uma experiência ritualizada para celebrar um encontro.

Platão eternizou o amor no ato de comer junto, ritualizando o cultivo da amizade. No célebre diálogo “O Banquete” vinculou os discursos em louvor ao deus Eros (o Amor) à uma vivência gastronômica na qual era celebrado o prêmio de melhor poeta conquistado por Agatão.

O próprio Jesus, o Cristo, escolheu o ato de cear para estar presente por toda eternidade e, em cada celebração eucarística, comemos o pão que o representa. Ao longo da história da cultura, o ato de comer e beber tornou-se um ritual simbólico de convivência humana, encontro dos que se amam.

A ciência gastronômica foi sistematizada no final século 18 por Jean-Anthelme Brillat-Savarin (advogado, juiz e prefeito de Belley na França) e publicada no livro “Fisiologia do Gosto”. Com impecável humor e belíssimas tiradas anedóticas, esse clássico da literatura gastronômica delineou o campo das relações entre filosofia, fisiologia e alimentação.

O livro é composto por 30 meditações que recobrem temas como: dos sentidos envolvidos no ato de comer e beber; do apetite; dos alimentos em geral; teoria da fritura, da influência da dieta sobre o repouso; o sono e os sonhos; da obesidade e; da história filosófica da culinária.

Para Savarian, a memória é composta de cheiros, sabores, cores e sons. E nela está contida todas os elementos envolvidos no ato de preparar e degustar os alimentos. É no fundo, uma questão de gosto. Definiu gosto como excitado pelo apetite, a fome e a sede, sendo “a base de várias operações que resultam no crescimento, desenvolvimento e conservação do indivíduo, e na reparação de suas perdas causadas pelas evaporações vitais”.

No século 19, o filósofo dinamarquês Sören Kierkegaard, escreveu também sua versão para O Banquete, onde um grupo de amigos se encontram para comer, beber e filosofar sobre o amor em suas múltiplas formas. No Banquete do precursor do existencialismo o pensamento é potencializado pela arte de comer junto: comemorar, através da refeição, o cultivo da amizade (uma das formas do amor).

No prefácio, ressaltou: recordar não é o mesmo que lembrar. Podemos muito bem nos lembrar de um evento sem por isso dele recordar:

“A memória não é mais do que uma condição transitória da recordação: ela permite ao vivido que se apresente para consagrar a recordação. A recordação tem por finalidade evitar as soluções de continuidade na vida humana e dar ao homem a certeza de que sua passagem pela terra pode exprimir-se na unidade de um traço de memória. A recordação é, por assim dizer, uma letra comercial que o homem saca sobre a eternidade. Por isso recordar é também uma arte. Desse modo, a faculdade de recordar é também a condição de toda a atividade criadora”.

Tenho recordações recorrentes de experiências gastronômicas e elas estão intimamente ligadas aos lugares por onde andei e as mais impregnantes são aquelas que se relacionam aos momentos decisivos em minha vida.

Uma delas ocorreu quando vivi a condição de ser estrangeiro. Era um dia ensolarado de verão quando sai para caminhar sem destino por vielas de Avignon, cidadela medieval na margem do rio Rhône no sul da França.

Fui conduzido pela brisa e cheiros que exalavam de minúsculas casas ao redor do Palácio dos Papas. Percorria num labirinto o tempo das pedras que não passam. Subitamente senti o odor de ervas aromáticas a exalar de uma pequena loja de frutas e verduras. Entrei para comprar algumas frutas que seriam minha refeição de almoço. Numa pequena placa estava escrito o prato do dia: “fricassê du lapin”. Perguntei à gentil senhora se ali era um restaurante. Ela disse que oferecia apenas a refeição preparada para si mesma e seu companheiro.

Decidi, num instante, almoçar ali. Entrei numa cozinha modesta e deliciei um ensopado de coelho acompanhado de uma garrafa do vinho Châteauneuf-du-Pape que amigavelmente ela colocou sobre a mesa. Enquanto saboreava o fricassê, ela me olhava e desejava saber de onde eu vinha e se estava gostando da cidade. Jamais esquecerei o cheiro e o sabor daquele cozido de coelho que saboreei na companhia da vendedora de frutas em Avignon.

Um traço de memória é uma inscrição de sentido. Numa experiência gastronômica todos os sentidos concorrem para tornar singular e única uma recordação. Pois como disse Savarin, “quem recebe os amigos e não dá atenção pessoal à refeição que lhes é preparada não é digno de ter amigos”. Isso porque, “entreter um convidado é encarregar-se de sua felicidade durante o tempo todo que estiver sob nosso teto”. Não sei se aquela senhora leu A Fisiologia do Gosto, mas bem sei que foi assim que fui tratado naquele dia: um amigo estrangeiro.

Revista Arraso / boa comida; Ano 7; nº 41; 1º semestre/2015; publicação do Jornal de Piracicaba; ilustração: Maria Luziano