“Praza ao céu que o leitor, audacioso e tornado momentaneamente feroz como isto que lê, encontre, sem se desorientar, seu caminho abrupto e selvagem, através dos pântanos desolados destas páginas sombrias e cheias de veneno; pois, a não ser que invista em sua leitura uma lógica rigorosa, e uma tensão de espírito pelo menos igual a sua desconfiança, as emanações mortais deste livro embeberão sua alma, assim como a água ao açúcar. Não convém que qualquer um leia as páginas que vêm a seguir; somente alguns saborearão este fruto amargo sem perigo. Há quem escreva em busca de aplausos humanos, por meio das nobres qualidades do coração que a imaginação inventa ou que eles podem ter. Quanto a mim, faço que meu gênio sirva para pintar as delícias da crueldade! Delícias não passageiras, artificiais; mas que começaram com o homem, e terminarão com ele. Este que canta não pretende que suas cavatinas sejam uma coisa desconhecida; ao contrário, orgulha-se que os pensamentos altivos e maldosos de Maldoror estejam em todos os homens.”
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Gênese da poesia maldita (1)
“Outrora, se bem me lembro, minha vida era um festim onde se abriam todos os corações, onde todos os vinhos corriam. Uma noite, sentei a Beleza nos meus joelhos. E achei-a amarga. E injuriei-a. Consegui fazer desvanecer-se em meu espírito toda a esperança humana. Sobre toda alegria, para estrangulá-la, dei o salto surdo da fera. O infortúnio foi meu deus. Estendi- me na lama. Sequei-me ao ar do crime. E preguei peças à loucura. E a primavera me trouxe o pavoroso riso do idiota.
‘Permanecerás hiena’, exclamou o demônio e me coroou de tão gentis papoulas. Ganha a morte com todos os teus apetites, e o teu egoísmo e todos os pecados capitais. Ah! Foi o que fiz e por demais! — Todavia, caro Satã, por favor, tende para mim um olhar menos irritado! e, enquanto ficais à espera de umas tantas covardiazinhas em atraso, e, já que apreciais no escritor a ausência das faculdades descritivas ou instrutivas, destaco para vós estas poucas hediondas folhas de meu caderno de réprobo.”
Entre palavras e coisas
No prefácio do livro As Palavras e as Coisas, publicado em 1966, Michel Foucault demonstrou que sua investigação arqueológica demarcou duas grandes descontinuidades na “epistémê” (saber) da cultura ocidental: a primeira inaugura a Idade Clássica (por volta do século 17) e, a outra, no início do século 19, delineando o limiar da modernidade. É em torno da segunda que emergiram todas as quimeras do humanismo naturalista e romântico: solo determinante para o surgimento das ciências humanas.
Constatou que “é um reconforto e um profundo apaziguamento pensar que o homem não passa de uma invenção recente, uma figura que não tem dois séculos, uma simples dobra de nosso saber e que desaparecerá desde que houver encontrado uma nova forma. Nesse limiar apareceu pela primeira vez esta estranha figura do saber que se chama homem e que abriu espaço próprio às ciências humanas”. Na última página do livro, encerrado de forma retumbante, Foucault proclamou tal como um Zaratustra: “O homem é uma invenção cuja recente data a arqueologia de nosso pensamento mostra facilmente. E talvez, o fim próximo”.
Romances Natalinos
Todo ano com aproximação do Natal e festejos do Réveillon somos tomados por um tsunami de afetos altruísta e os encontros de confraternização se multiplicam. Os encontros familiares começam a se anuviarem e de um modo ou de outro, todos são convocados a suspenderem as mágoas, rancores, raivas, ressentimentos e sentimentos afins, designados pela moral como agentes do mal. Na imagem sublime da natividade, o ódio é subitamente colocado em suspenso e suspense: o amor irá triunfar e, quiçá sobreviver às comidas, bebidas e trocas de presentes.
A família é valorada como símbolo do Natal. Ocorre que há famílias, no plural. Cada unidade básica, cada célula familiar (como diriam os sociólogos funcionalistas), tem uma história singular. Cada um dos membros que compõem uma família tem sua própria narrativa e memórias: seus traços mnêmicos. Cada um conta como é ser filho, filha, pai, mãe, irmão, avó, avô, tio, sobrinho, neto, etc. A família é um romance com seus dramas tragicômicos — como tudo o que podemos narrar nesta vida. Um bom exercício natalino é uma roda de conversa onde cada um pode narrar suas memórias. O perigo é desembocar numa D.R. familiar: dependendo do teor alcoólico dos convivas, o estrago pode ser grande.
Imaginação, Ciência e Poesia
“A ciência, a nova nobreza! O progresso. O mundo marcha! Por que não haveria de girar?” (Arthur Rimbaud)
A epistemologia (reflexão filosófica sobre a história do conhecimento científico) de Gaston Bachelard merece ser estudada nossos dias de hoje. A singularidade de seu trabalho de pensador pode ser reconhecida em dois de seus mais importantes leitores: o médico e filósofo Georges Canguilhem e, Michel Foucault. Em torno deles formou-se a clássica Escola de Epistemologia Francesa. O conceito “corte epistemológico” (um acontecimento que instaura descontinuidade na história das ciências), muitas vezes empregado por Foucault, é um marco decisivo na pesquisas arqueológicas e genealógicas. Tal conceito é “ad valorem” das leituras que realizou da obra de Bachelard.