Arte e Loucura: interfaces

A arte como forma de expressão da loucura e lugar de sua continência ocupou a cena central no movimento surrealista da década de 1920. Imersos no cenário desolador pós Primeira Guerra Mundial e a Revolução Soviética de 1917, os surrealistas marcaram profundamente o destino da literatura, das artes plásticas, da filosofia e da psicanálise nas décadas seguintes. Toda uma geração de escritores, pintores, dramaturgos, além de médicos psiquiatras tomaram parte nesse movimento de vanguarda artística. Surgindo daí o movimento antipsiquiátrico e da luta antimanicomial.

André Breton e Tristan Tzara travaram um duelo de grandes proporções na história da cultura contemporânea. Para além das posições antagônicas no que dizia respeito ao compromisso do movimento com as causas da revolução marxista, os baluartes do surrealismo estavam atentos às novas possibilidades de interpretação do mundo, da matéria e do humano. É nesse sentido que os nomes de Einstein, Heisenberg e Freud foram invocados pelos surrealistas para fundamentar seu projeto revolucionário: proclamar a ruptura da arte com a lógica e por conseqüência interrogar as práticas de internamento dos doentes mentais. O livro Nadja, publicado por Breton em 1926, é a expressão sublime desse projeto.

A batalha dos surrealistas pela libertação dos loucos dos manicômios demonstrava bem o grau de conhecimento da história da loucura em suas práticas de exclusão social. A cultura ocidental foi estranhamente hospitaleira a experiência da loucura até por volta de 1650. Os loucos circulavam, faziam parte do cenário e da linguagem comuns. Era uma experiência que cada um poderia vivenciar em algumas situações cotidianas. Neste período havia loucos célebres com os quais o público culto gostava de se divertir, ouvir histórias. Alguns eram escritores e seus livros publicados e lidos como obras de loucura. A partir de então, uma brusca mudança: o mundo da loucura vai tornar-se o mundo da exclusão.

Criam-se por toda a Europa estabelecimentos para a internação não somente dos loucos, mas toda uma série de indivíduos bastantes diferentes uns dos outros. O Hospital Geral não tinha vocação médica alguma. O internamento era uma medida de assistência social. Era preciso defender a sociedade desses que são os dejetos de um ideal de normalização moral de um mundo burguês em processo de constituição. No livro História da Loucura, publicado em 1961, Michel Foucault demonstrou a categoria comum que reunia em grupo todos aqueles que residiam nas casas de internamento: a incapacidade em que se encontravam de tomar parte na produção, na circulação ou no acúmulo das riquezas seja por sua culpa ou acidentalmente.

A exclusão a que são condenados os loucos está na razão direta desta incapacidade e indicava o aparecimento no mundo moderno de um corte que não existia antes. O internamento foi então ligado em sua emergência e no sentido primordial a esta reestruturação do espaço social. Este fenômeno foi decisivo para a constituição da experiência da loucura como doença mental.

 

Publicado no Jornal Cidade de Rio Claro no projeto “Conhecimento para Todos” do Instituto Justa Trilha Brasil

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