O estado atual da loucura

A obra de Sigmund Freud foi interpretada por Michel Foucault como tendo inaugurado uma nova forma de interpretação que interroga sem cessar a constituição da psiquiatria e demais ciências humanas. Essa posição aparece no artigo de 1964: “A Loucura, a Ausência da Obra”. Iniciou com a seguinte previsão: “Talvez, um dia, não saibamos mais muito bem o que pode ter sido a loucura. Sua figura terá se fechado sobre ela própria, não permitindo mais decifrar os rastros que ela terá deixado”.

Logo adiante, após identificar um ponto de mutação que marca uma descontinuidade na concepção clássica da loucura, Foucault apresentou algumas questões decisivas para nossa atualidade: “qual será o suporte técnico dessa mutação? A possibilidade para a medicina de dominar a doença mental como doença orgânica? O controle farmacológico preciso de todos os sintomas psíquicos? Ou uma definição bastante rigorosa dos desvios de comportamento, para que a sociedade tenha tempo disponível de prever, para cada um deles, o modo de neutralização que lhe convém? Ou ainda outras modificações das quais nenhuma, talvez, suprimirá realmente a doença mental, mas que terão como sentido, apagar de nossa cultura a face da loucura? ”

Reconheceu Freud como o primeiro a romper com os modos de apagamento que o discurso psiquiátrico impôs à loucura. Com Freud, a loucura deixou de ser falta de linguagem, blasfêmia proferida ou significação intolerável. Por isso, proclamou ser preciso um dia fazer justiça a Freud.

Freud instaurou uma discursividade (a psicanálise) e toda uma rede de proliferação de sentido pôde ser produzida. Como autor, criou a possibilidade e a regra de formação de outros discursos que, ao se remeterem à psicanálise, não poderão mais sustentar sua validade por um recuo ao sentido originário. Por isso, não tornou possível apenas certo número de analogias, tornou possível certo número de diferenças ao abrir o espaço para outra coisa diferente dele e que, no entanto, pertence ao que ele fundou.

O pressuposto adotado pela psicanálise é que os fenômenos considerados normais, tais como: atos falhos, lapsos de linguagem falada ou escrita os sonhos, podem ser compreendidos como parte de um conjunto que envolve os fenômenos patológicos: as crises convulsivas, delírios, visões, ideias ou atos obsessivos, conversões histéricas. Ou seja, os processos normais e os descritos como patológicos seguem as mesmas regras de causalidade psíquica. Assim, a primeira linha que demarca o território da psicanálise significou um apagamento das fronteiras entre o normal e o patológico.

A psicanálise rechaçou, até agora, a referência da tópica psíquica a uma localização anatômica (o cérebro como centro das atividades psíquicas). De igual modo, rechaçou qualquer referência a uma estratificação histológica (como as determinações genéticas). Freud solicitou de seus leitores que evitassem a tentação de buscar uma base anatômica para o aparelho psíquico. Advertência fundamental para todos que pretendem circular no território da psicanálise e evitar o canto da sereia de nossos tempos: as neurociências.

Publicado no Jornal Cidade de Rio Claro no projeto “Conhecimento para Todos” do Instituto Justa Trilha Brasil

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