Toda vez que vejo um girassol sou inundado de nostálgica alegria. Nas casas de minha infância era a flor predominante. Minha avó paterna cultivava com esmero flores em diferentes formas e cores. As preferidas eram margarida, rosa, dália e girassol. Por várias vezes a ouvi conversando com as flores. Quando perguntei porque falava com as flores, respondeu-me com um tom singelo que até hoje sou capaz de rememorar cada palavra: “as flores possuem alma como os humanos e os animais”. Desde então, tenho pelas plantas o maior respeito. Dentre todas, o girassol é minha preferida.
A beleza do girassol foi eternizada em série de doze telas pintadas por Vincent Van Gogh. Nelas, o amalucado holandês registrou com genialidade a fugacidade do tempo. Em agosto de 1888 colheu no campo ramalhete de girassol e o arrumou num vaso sobre a mesa do quarto onde morava em Arles, sul da França. Com voracidade e frenesi que lhe eram próprios, imprimiu nas telas, dia após dia, o tempus fugit. As pétalas caem rápido depois de ceifada a flor e os flósculos adquiriram o esplendor de volume amarelo alaranjado, pendentes em harmoniosa composição.
Nas cartas remetidas ao seu irmão Théo em Paris podemos acompanhar a decisão de pintar os girassóis para ornamentar o pequeno quarto-ateliê, na espera da chegada do amado amigo também pintor, Paul Gauguin.
Os pesquisadores da obra de Van Gogh são unânimes em reconhecer na série dos girassóis o marco de ruptura com o movimento impressionista e nela, a gênese da explosão de cores que se tornou suas insígnias. De minha parte, considero os girassóis a expressão sublime da sonoridade das cores, materializando o espírito da música de Richard Wagner.
Na carta de 06/junho/1888: “Estou lendo um livro sobre Wagner – um grande artista, um deste na pintura seria bom, acredito que ainda virá. Agora que vi o mar [Mediterrâneo], percebo a importância de ficar aqui e explorar, no exagero, as cores. O futuro da nova arte está no Midi [designação da região da Provence]. Aqui é como se eu estivesse no Japão. Todos os impressionistas são influenciados pelas pinturas japonesas. Vemos as cores aqui com um olho japonês, sentimos a cor de um modo japonês. Os japoneses desenham rápido, muito rápido, como um relâmpago; é que seus nervos são mais delicados, sua sensibilidade mais simples”.
No início de agosto: “O que aprendi em Paris se esvai e estou retornando às ideias que me surgiram no campo, antes de conhecer os impressionistas. Eu não ficaria espantado se dentro em pouco eles começarem a me censurar por minhas telas explodir em cores. Meu trabalho está sendo fecundado muito mais por Eugène Delacroix do que pelos impressionistas com os quais vivi. Ao invés de procurar representar exatamente o que tenho sob os olhos, sirvo-me mais arbitrariamente da cor para me exprimir com força. Vou ser agora um colorista arbitrário”.
A primeira referência às telas com os girassóis aparece na carta seguinte: “Estou pintando com o ardor de um marselhês comendo uma caldeirada de frutos do mar. O projeto é uma dúzia de vasos com girassóis que devem ser vistos como uma sinfonia em azul e amarelo. Estou trabalhando nisso todas as manhãs, desde o nascer do sol, pois as flores murcham rápido e é preciso fazer o conjunto num só traço. Estou exercitando uma técnica simples, ligeira e precisa”.
Em cada pincelada uma nota musical e, em seu conjunto, as telas com os girassóis se assemelham a um poema sinfônico composto para orquestra de metais. Gosto de olhar para os girassóis de Van Gogh e neles encontrar as Cavalgadas das Valquírias de Wagner. Numa crescente embriaguez dos sentidos é um brinde à potencia primaveril.
Fonte:
Revista Arraso / Estilo
Ano 7; nº 56; 2º semestre/2015; publicada por
Ao Gato Preto Editora – Piracicaba/SP
Ilustração: Maria Luziano