A Felicidade Absurda

A Felicidade Absurda

A consciência da condição absurda em que nos é dada a viver foi o tema principal de Albert Camus ao longo de sua trajetória como escritor. Filho de uma argelina, empregada doméstica analfabeta, com um oficial francês, carregou em seu espírito as marcas da absurdidade e soube transformá-las em seu mais sublime estilo.

Deixou Argélia, na época colônia da França, e desembarcou em Paris no início de 1940, trazendo na bagagem os manuscritos de dois livros que revolucionaram a relação entre literatura e filosofia: o romance O Estrangeiro e o ensaio filosófico O Mito de Sísifo. Recebeu o Prêmio Nobel de Literatura em 1957 pelo conjunto de sua obra.

Com o subtítulo, “Ensaio sobre o absurdo”, O Mito de Sísifo indica ao leitor seu tema gerador: “As páginas que se seguem tratam de uma sensibilidade absurda que se pode encontrar esparsa no século – e não de uma filosofia absurda que nosso tempo não conhece”. Deixou claro: “o absurdo, tomado até aqui como conclusão, é considerado neste ensaio como um ponto de partida”. O que significa tomar o absurdo como premissa e não como conclusão?

O niilismo reativo, esparso na literatura desde o final do século 19, encontrou seu fundamento no seguinte silogismo: Nascemos para morrer. A vida não tem sentido. Logo, o absurdo é a condição existencial. Neste caso, o absurdo é conclusão. Camus radicalizou: “Só existe um problema verdadeiramente sério: é o suicídio. Julgar se a vida vale ou não vale a pena ser vivida é responder à questão fundamental da filosofia”. E, implicitamente interrogou: porque os niilistas não se matam? Já que a vida não vale nada, porque continuar vivendo? Aceitar o absurdo como conclusão tem implicações existenciais da maior grandeza. Por isso, o suicídio é o problema filosófico decisivo.

Na língua francesa há um jogo metonímico que demonstra bem a homofonia entre Le mythe de Sisyphe e seu deslizamento significante para le mythe décisif (decisivo). Sísifo é um mito decisivo para que o escritor argelino o tenha como herói absurdo. O que significa ter o absurdo como premissa? A lógica do niilismo é subvertida.

O absurdo como adjetivo qualifica aquilo que é contrário à razão, ao que fere as regras da lógica ou as leis da razão, ou é irredutível a elas. O que é decisivo, portanto, é que escapa, vaza, transborda, ultrapassa o campo da racionalidade. A desrazão é a estratégia para afirmar a ausência de sentido, o non-sense, como pressuposto básico de todo ato de criação. Se não há sentido, então é preciso criá-lo, é decisivo inventá-lo.

Os comentários sobre Sísifo, o herói trágico que aprisionou a morte, serviram para Camus construir o protótipo do homem absurdo. Camus escolheu muito bem o personagem da mitologia grega para demonstrar as características do herói absurdo: o desprezo pelos deuses, o ódio à morte e a paixão pela vida são as causas do suplício indescritível do herói: reiniciar sempre uma tarefa que não poderá ser completada. Os deuses certamente sabiam que não existe punição mais terrível do que o trabalho inútil e sem esperança. Por isso, condenaram Sísifo a rolar um rochedo incessantemente até o cimo de uma montanha.

Sísifo é o herói que ensina “a fidelidade superior que nega os deuses e levanta os rochedos” por isso “é preciso imaginar Sísifo feliz”. Camus identifica a felicidade de Sísifo no instante em que decide reiniciar sua tarefa e descer pelas encostas da montanha para buscar seu rochedo e arrastá-lo novamente até o cimo. É no momento da descida que Sísifo revela seu caráter de herói absurdo. Se esse mito é trágico, é porque seu herói é consciente: “Sísifo, proletário dos deuses, impotente e revoltado, conhece toda a extensão de sua condição miserável: é nela que ele pensa enquanto desce. A lucidez que devia produzir o seu tormento transforma, com a mesma força, em sua vitória”.

Fonte:
Revista Arraso / Design & Decor
Ano 7; nº 57; 2º semestre/2015; publicada por
Ao Gato Preto Editora – Piracicaba/SP
Ilustração: Maria Luziano