Seguimos com os comentários da versão francesa do mítico Don Juan escrita pelo dramaturgo Molière no século 17. A peça teatral, Don Juan ou o
Retornemos ao argumento sobre o casamento como estratégia de conquista do habilidoso sedutor. Leporelo diz a Gusmão (servo de Dona Elvira): “para realizar sua paixão predominante ele não hesitaria em casar também contigo, teu gato e o teu sapato. Um casamento não lhe custa nada; é só uma estratégia para atrair as tolas; casa como respira, sem mesmo perceber”. A paixão predominante de Don Juan é seduzir para incluir na lista das mulheres conquistadas: mais uma. A sedução é a arte da conquista. Nesta perspectiva, Don Juan é um artista.monarquia francesa. Festim de Pedra, realizou a desconstrução da moral religiosa que legitimava a sociedade aristocrática. Tal acontecimento ocorreu no interior da própria sociedade de corte, no Palácio Royal em Paris, morada do Cardeal Richelieu, o grande articulador político, estrategista e retórico conselheiro da
Na sequência, Leporelo (o fiel contador) diz: “E, uma vez conquistado, ele esquece e passa para a próxima. Senhoras ou donzelas, burguesas, camponesas, vai de um tudo — para ele não há carne retostada ou malpassada. Embora prefira crua. E tenra. Se eu fizesse a lista de todas mulheres com quem se casou aqui, ali e acolá, você ia ter que tomar nota o dia inteiro. Vejo que estas estupidificado. Mudas até de cor ouvindo o que te digo. E fiz apenas um esboço do nosso personagem. Para um retrato bem acabado ia correr muita tinta. Consola-te na certeza de que mais dia menos dia, a cólera do céu desaba sobre ele. Eu preferiria ser servo do demônio.”
Na cena 2, no diálogo entre Don Juan e Leporelo, encontra-se o aspecto escultural do mito. Don Juan solicita ao servo que diga o que ele pensa sobre suas habilidades de sedutor libertino. “Dou-te plena liberdade para soltar tudo o que pensa a meu respeito”, provocou. “Nesse caso, senhor, lhe digo com toda franqueza que de modo algum aprovo seu procedimento. E acho bem safado amar pra lá e pra cá como o senhor faz”. É neste momento que Don Juan expressa sua capacidade retórica, justificando seus atos em fundamentos filosóficos. Ao final da oratória, Leporelo, como sutil ironia, aclama: “Maravilha de discurso! Parece até que aprendeu isso de cor —fala como um livro”.
O discurso retórico de Don Juan é exemplar para Molière construir a tipologia do personagem. Após a reprovação do servo sobre sua conduta de burlador, Don Juan responde com ironia: “Você pretende que uma pessoa se ligue definitivamente a um só objeto de paixão, como se fosse o único existente? Depois disso renunciar ao mundo — ficar cego para todas as outras formas de beleza? Bela coisa, sem dúvida, uma pessoa em plena juventude enterrar-se para sempre na cova de uma sedução, morto para todas as belezas do mundo em forma de mulher. Tudo em nome de uma honra artificial que chamam fidelidade? Ser fiel é ridículo, tolo, só serve aos medíocres”.
A força da retórica está em interrogar, com o propósito de fazer vacilar as certezas do ouvinte e, só depois, apresentar os argumentos que visam convencer, subjugar o ouvinte com uma nova perspectiva, outro modo de ver. O ponto de giro é a relação entre fidelidade e honra.
“A mim (continua o galante sedutor) a beleza me enlouquece em qualquer lugar em que a encontre; e cedo facilmente à doce violência com que me domina. Em amor é lindo estar comprometido.
Mas o compromisso que tenho com a beleza não impede minha alma de ser justa com as outras. Tenho os olhos sempre abertos para o mérito de inúmeras. E rendo sempre, a todas e a cada uma, as homenagens e os tributos a que a natureza me impele. Seja por que for, não posso, não devo, recusar meu coração a nada do que vejo de adorável; e se mil rostos formosos me pedissem, partiria em mil meu coração para atendê-los. As atrações nascentes têm encantos inexplicáveis – todo o gozo do amor está na renovação.”
Termina o discurso no ápice, no momento da rendição do ouvinte/leitor: “Enfim, não há nada tão doce quanto dobrar a resistência de uma bela mulher. Nisso, minha ambição é igual à dos grandes conquistadores, que voam eternamente de batalha em batalha, jamais se resignando a limitar sua ambição. Também não faço nada refreando a impetuosidade dos meus desejos. Minha vontade é seduzir a Terra inteira. Como Alexandre, lamento que não haja outros mundos para estender até lá minhas conquistas amorosas”.
Não é sem motivo que o rei Luis 14 (Rei Sol) tinha profunda paixão pelo mítico Don Juan representado por Molière. Tamanha admiração levou o monarca a identificar-se com o Burlador de Sevilha e criar a companhia teatral “comédie française” em 1680 financiando a apresentação desta versão do mítico Don Juan por toda vasta extensão de seu reino.
in: série “livros e lugares” – Caderno Cultura do Jornal de Piracicaba, 20/abr/2014
ilustração: Erasmo Spadotto