Don Juan, o burlador de Sevilha (7)

Da versão francesa do mito Don Juan, encenada pela “comédie française” de Molière, à versão italiana na “commedia dell’arte”. Don Juan é um personagem teatral esculpido na letra espanhola como El Burlador de Sevilha. Dentre as dezenas de peças teatrais em solo italiano, desde o alvorecer do século 17, destaco apenas um aspecto do libreto Don Giovanni escrito por Lorenzo da Ponte. O libreto foi musicado por Wolfgang Amadeus Mozart compondo a monumental ópera que estreou em Praga em 1787. Seguindo a proposta desta série, atenho-me à letra, ao aspecto literário do libreto e, com isso, sustento nossa premissa inicial: Don Juan é o primeiro mito moderno. A popularidade do mítico burlador na Itália é atestada desde 1699 com a peça musical: O Ímpio Punido composta por Alessandro Melani com libreto de F.Acciaiuoli. Esta versão também é conhecida como O Convidado de Pedra. Em 1736, Goldoni escreveu o livreto Don Giovanni, o Dissoluto Punido, atribuindo ao mítico sedutor um julgamento moral predominante em outras versões: o destaque aqui é a punição (juízo final) pelos crimes contra a honra cometidos pelo galante conquistador de mulheres.

O adjetivo “dissoluto” demarca bem a empreitada de Goldoni. Há dupla rede de significação: a punição como dissolução, decomposição que a morte impõe e; em sentido figurado, predica alguém como sendo de mau costume, mau caráter, depravado, devasso e libertino. Lorenzo da Ponte construiu sua versão do mito Don Juan para escapar da armadilha do julgamento moral sobre as aventuras do galante sedutor. Suas referências literárias fundamentais são: El Burlador de Sevilha atribuída ao frade espanhol Tirso de Molina e, Don Juan ou o Festim de Pedra escrita por Molière. Designando Don Giovanni como um drama “giocoso” em dois atos,  o autor italiano nomeou cada um dos oito personagens que compõe a peça: o Comendador e sua filha Dona Ana, noiva de Don Otávio; Dona Elvira, dama de Burgos, abandonada pelo galante sedutor; Leporelo, servo de Don Giovanni; o casal camponês: Maseto e Zerlinda e o

personagem principal, um nobre cavaleiro “extremamente licencioso”.

Para versão de Lorenzo da Ponte, Don Juan é um nobre (extremamente) licencioso. O adjetivo licencioso designa quem abusa da liberdade, o que agride e transgride as normas e convenções sociais, os códigos morais; sendo também um desregrado e indisciplinado. É alguém que fere a decência e desconsidera as proibições sexuais; marcado pelo desregramento moral. Em suma, um burlador depravado e libertino: licencioso.

Da Ponte situou a cena numa cidade da Espanha, sem especificar. Subliminarmente o leitor do libreto encontrará indícios da presença da versão espanhola e da versão francesa. Restringindo o comentário à contabilidade das conquistas, retorno ao argumento da retórica de Don Juan descrito por Molière: “Enfim, não há nada tão doce quanto dobrar a resistência de uma bela mulher. Nisso, minha ambição é igual à dos grandes conquistadores, que voam eternamente de batalha em batalha, jamais se resignando a limitar sua ambição. Também não faço nada refreando a impetuosidade dos meus desejos. Minha vontade é seduzir a Terra inteira. Como Alexandre, lamento que não haja outros mundos para estender até lá minhas conquistas amorosas.”

De igual modo, o discurso do servo Leporelo em Molière pode ser encontrada na célebre Ária “Madamina, il catálogo è questo” do libreto Don Giovani. Na versão de Molière, o catálogo das conquistas é apenas esboçado: “E, uma vez conquistado, ele esquece e passa para a próxima. Senhoras ou donzelas, burguesas, camponesas, vai de um tudo — para ele não há carne retostada ou malpassada. Embora prefira crua. E tenra. Se eu fizesse a lista de todas mulheres com quem se casou aqui, ali e acolá, você ia ter que tomar nota o dia inteiro.” Lorenzo da Ponte quantifica e arremata o catálogo em número e lugar. Tentando consolar Dona Elvira, o sutil e irônico Leporelo entregou o ouro. Com o caderno de anotação contábil em mãos, proclama: “Minha senhora aqui está a lista das mulheres que meu patrão amou. É um catálogo que eu mesmo escrevi. Na Itália, 640; na Alemanha, 231; na França, 100; na Turquia, 91; mas na Espanha, 1003. Para ele tanto faz que seja campesina, citadina, condessa, baronesa, marquesa, princesa. Nas loiras, elogia a gentileza; nas morenas, a constância; nas brancas, a doçura. No inverno deseja as gordinhas; no verão, as magrinhas. A grande majestosa é a pequenina graciosa. As velhas ele conquista só pelo prazer de incluir na lista. Mas, sua paixão predominante, é a jovem principiante. Pouco importa que seja rica, seja bruta ou seja bela. Desde que use saia, vos sabeis bem o que ele faz.”

O catálogo é a prova documental da licenciosidade de Don Giovanni. A lista das mulheres que seduziu identifica o personagem como um mítico conquistador. Don Juan, o burlador, tornou-se mito ao representar com perfeição o tema moderno da conquista por méritos próprios: as mulheres conquistadas são metáforas das conquistas de terras, territórios. Lugares por onde a cultura européia se expandia com as navegações marítimas intercontinentais.

in: série “livros e lugares” – Caderno Cultura do Jornal de Piracicaba,27/abr/2014

ilustração: Erasmo Spadotto