Don Juan, o burlador de Sevilha (5)

No artigo anterior, destaquei a versão francesa de Don Juan escrita e encenada por Molière no Palais Royal de Paris em janeiro de 1665, bem como seu contexto histórico/literário. Molière capturou a seiva da versão espanhola do Burlador de Sevilha e incorporou as diferentes interpretações do mítico Don Juan que circulavam pela Europa com o título O Convidado de Pedra. O Burlador tem como tema central a questão da honra; no Convidado o tema é a hospitalidade: a estátua do comentador assassinado por Don Juan é a voz do além-túmulo conclamando o arrependimento ou a danação derradeira.

 O título escolhido, Don Juan ou o Festim de Pedra, demonstra o modo como Molière teceu estes dois fios históricos com mestria e sagacidade: a hospitalidade servirá como estratégia, para desnudar a honra. As leis da hospitalidade e a honra como lei estruturam os códigos morais numa sociedade aristocrática. A encenação no teatro do Palácio Royal determina bem o lugar político por excelência. Construído no início do século 17 como residência oficial do Cardeal Richelieu, o palácio abrigou o nascimento da “comédie française”: a grande invenção de Molière. Com a morte do Cardeal, o palácio tornou-se o local em que o Rei Luís 14 passou a infância. No século 18, com a regência dos duques de Orléans, foi palco de festins dionisíacos – para deixar Calígula com inveja.

Também destaquei a cena de abertura da peça; com tabaqueira em mãos, Leporelo (criado de Don Juan) faz um elogio ao uso do rapé: “Diga o que diga Aristóteles e toda sua filosofia — não há nada que se compare ao rapé. É a paixão dos nobres. Não exagero — quem não ama o rapé não é digno da vida”. Este elogio como abertura cênica dá o tom à melodia dionisíaca que emana na versão de Molière para o mítico Don Juan.

Ao colocar o nome de Aristóteles na boca de um servo, Molière registrou a popularidade de sua filosofia no século 17. Todo pensamento libertino, marcado pelo culto aos prazeres como finalidade de todas as ações, pode ser encontrado na tradição sensualista (materialista) da filosofia de Aristóteles que circulava pela Europa naquele tempo. “Diga o que diga Aristóteles e toda sua filosofia” é o ponto de ancoragem da versão de Molière. Em especial, a tradução latina da obra Ética a Nicômano era referência filosófica básica para emergência da modernidade nas peças escritas por Molière.

No 1º livro da Ética, Aristóteles definiu o Bem como a finalidade de todas as ações: “Se, pois, para as coisas que fazemos existe um fim que desejamos por ele mesmo e tudo o mais é desejado no interesse desse fim; e se é verdade que nem toda coisa desejamos com vistas em outra (porque, então, o processo se repetiria ao infinito, e inútil e vão seria o nosso desejar), evidentemente tal fim será o bem, ou antes, o sumo bem. Verbalmente, quase todos estão de acordo, pois tanto o vulgo como os de cultura superior dizem ser esse fim a felicidade e identificam o bem viver e o bem agir como ser feliz”. Este é o ponto de partida da caracterização do conquistador libertino feita por Molière. Ser feliz para Don Juan é conquistar: mais uma na lista é a efetivação de sua potência. Lembremos a definição de Albert Camus: Don Juan põe em ato uma ética da quantidade.

Através do personagem Leporello, Don Juan vai se apresentado ao leitor/expectador. Qual o sumo bem de Don Juan? O ato da conquista. É curioso notar que as versões do mítico sedutor destacam justamente o tempo da conquista, sua contabilidade e a condenação (juízo final). Já no 1º Ato, no diálogo entre Leporello e Gusmão (criado de Dona Elvira – a desonrada que exige vingança), Molière apresentou a identidade de Don Juan: um porco epicurista. Na versão espanhola de Tirso de Molina, o servo Catalinón definiu Don Juan como “lagosta das mulheres”. Aqui, na versão francesa, é apresentado como um porco de Epicuro.

“Cá entre nós (diz Leporelo em tom de confidência), nesse meu patrão Don Juan, você tem o maior patife que a Terra já produziu; um cão danado, um demônio, um turco priápico, um herege, que não respeita nem o Céu, nem os Santos, nem a Deus, nem ao Diabo. Bom, também não acredita em mula sem cabeça, fantasmas ou lobisomens. Vive a vida como um animal selvagem; um porco de Epicuro, verdadeiro Sardanapalo, que só busca o prazer, e fecha os ouvidos a todas as censuras que lhe faça o mais puro cristão. Para realizar sua paixão predominante ele não hesitaria em casar também contigo, teu gato e o teu sapato. Um casamento não lhe custa nada; é só uma estratégia para atrair as tolas; casa como respira, sem mesmo perceber”.

A partir desta sutil descrição, “um breve esboço do nosso personagem”, como disse Leporelo, passou a listar todas as mulheres conquistadas pelo galante sedutor. Tema para o próximo domingo.

in: série “livros e lugares” – Caderno Cultura do Jornal de Piracicaba,13/abr/2014

ilustração: Erasmo Spadotto