Um livro dedicado aos espíritos livres, Humano Demasiado Humano, exige leitores que “não estejam atormentados por obrigação boçal, ele pede sentimentos delicados e tem necessidade do supérfluo, da superfluidade de tempo, de clareza no céu e no coração”. Escrito na viagem ao golfo de Nápoles, abriu a série dos textos filosóficos de Nietzsche, inaugurando seu genial estilo aforismático, com sentenças e máximas.
Encrostada num penhasco sobre o mar Tirreno e sombreada por limoeiros, Sorrento era, desde o século 18, o destino de grandes nomes da literatura, música e pintura. Também conhecida como cidade das sereias, o vilarejo lança sua genealogia no legendário Ulisses, o grande Odisseu. Homero localizou nesta charmosa encosta o célebre encontro do herói com as sereias e a decisão de utilizar cera de abelha no ouvido, para não ser seduzido pelo canto das belas musas aquáticas.
No outono de 1876, Nietzsche partiu de Genebra com destino ao sul da Itália e tal como o herói homérico foi também se encontrar com as sereias. A decisão pela viagem ocorreu num momento delicado de sua vida: saúde fragilizada, agravada por uma crise existencial decorrente da ruptura dos laços de amizade com Richard Wagner e um esgotamento de suas atribuições como docente da Universidade da Basiléia.
No conjunto da correspondência com os seus amigos do período, há registros da situação em que se encontrava antes da partida. O convite para ir ao Golfo partiu da amiga, condessa Malwida von Meysenbug, após ter recebido carta do filósofo em profundo lamento:
“Minha frágil saúde agravou minha depressão. Como bem sabes, nunca sofremos só corporalmente; vivemos tudo misturado com crises espirituais, por isso não posso conceber recuperar a saúde só com medicinas e dietas. Para nós, você e eu, o segredo de toda possível cura consiste em adquirir dureza de epiderme, afim de diminuir nossa vulnerabilidade frente aos ataques do mundo externo e o sofrimento psíquico decorrente”.
Neste pedido de socorro, remetido à condessa, seguiu também a circunstância existencial: “Todos os meus planos se modificaram e é doloroso saber que meus amigos haviam depositado em mim esperanças que agora não posso realizar. Desejo seguir outros caminhos que possam me libertar de mim mesmo”.
O declínio da carreira acadêmica em filologia clássica e o ultrapassamento da barreira que a filosofia de Schopenhauer lhe impunha, abriam novos caminhos para Nietzsche. Em Sorrento conquistou a liberdade de espírito tão almejada e escreveu Coisas Humanas, Demasiadamente Humanas.
Numa carta à filha adotiva, Malwida relatou o encontro extasiado do filósofo com a exuberante natureza do sul: “Eu jamais vi Nietzsche tão animado: ria de alegria; sua fisionomia se iluminava de um espanto alegre, quase infantil; era dominado por uma emoção profunda de renascimento e explodiu em exclamações de júbilo sobre o sul, que eu saudei como um feliz presságio da eficácia de sua temporada”.
De fato, o feliz presságio da condessa se realizou na lavra do livro. A estadia em Sorrento e os passeios pela região, cumpriram uma função terapêutica: criaram as condições para um renascimento espiritual. Cinco anos depois da viagem, lembrou-se do passeio de carruagem pelas ruas de Nápoles:
“Como posso ter suportado viver antes de conhecer o sul? Não tenho força suficiente para o norte: lá reinam almas grosseiras e artificiais e trabalham tão assiduamente quanto ao castor em sua construção. E pensar que foi lá no norte que passeia toda a minha juventude. A primeira vez que vi o entardecer com seu vermelho e cinza aveludado no céu de Nápoles, pensei comigo mesmo: ‘você poderia ter morrido sem ter visto isso’. Senti um arrepio a percorrer todo o meu corpo e senti pena de mim mesmo pelo fato de haver começado minha vida sendo velho, e me vieram lágrimas e o sentimento de ter sido salvo, ainda que no último instante. Eu tenho disposição suficiente para o sul”.
Alojados numa exclusiva pensão na Villa Rubinacci, Nietzsche e seus amigos desfrutaram as delícias do sul. No dia seguinte à chegada, escreveu à sua irmã: “disponho de um quarto enorme, com teto alto e varanda. À vista tenho um vasto bosque de laranjeiras, figueiras e limoeiros; atrás, o mar muito escuro, e ao fundo o Vesúvio. A combinação do ar da montanha e do mar é revigorante. Acabo de tomar meu primeiro banho de mar. Sorrento e Nápoles são bonitas, quem o diz não exagera”.
Livros e Lugares – Caderno de Domingo – Jornal de Piracicaba – 26/abr/2015