Demasiado Humano em Sorrento – 4

Pouco antes de partir de Genebra ao Golfo de Nápoles, Nietzsche escreveu três cartas aos íntimos narrando sua condição existencial no momento da decisão de viajar ao sul da Itália, aceitando assim, o convite da condessa Malwida, amiga sexagenária. O contexto é importante cenário para adentrar no conteúdo do livro Humano, Demasiado Humano, ditado a Peter Gast, músico escriturário dos pensamentos do filósofo alemão, durante a estadia em Sorrento.

1ª Ao Barão de Gersdorff: “cheguei a uma importantíssima conclusão: a única coisa que os homens reconhecem e admiram, a única ante a qual se inclinam, é o ato magnânimo. E, para conquistar tal ato, é preciso permanecer fiel a si próprio. Sei da influência que exerço em muitos leitores. Se eu cair em fraqueza e ceticismo não arruíno e prejudico apenas a mim, também levo a ruína aquelas vidas que cresce e se desenvolve junto à minha”.

2ª A Heinrich Romundt: “Voltei a mim mesmo encontrando confiança nos meus propósitos e desejos, na consciência do trabalho que tenho a realizar e no valor da saúde física e espiritual. Sigo nadando contra a corrente e assim adquiro força. Nunca sei qual a minha enfermidade, nem se realmente estou enfermo como sinto. Sou, ao mesmo tempo, a máquina e o maquinista. Neste reencontro comigo mesmo, todos os dias venero uma única coisa: minha libertação moral e insubordinação; sinto ódio contra tudo o que me seduz à debilidade e ao ceticismo”.

3ª A Erwin Rohde: “Tenho meditado muito e estou transbordando desde que me livrei da velha capa de musgo acumulada sobre mim pelo cotidiano dever de pensar e ensinar. Felizmente, nos intervalos que a dor me concede, experimento uma grande exaltação de espírito e sensibilidade. Há pouco reli a tragédia Prometeu Acorrentado. Na genial criação de Esquilo encontrei meu Eu, elevado e divinizado”. Concluiu citando Horácio: “se agora vai mal, nem sempre há de ser assim”.

O livro escrito em Sorrento no outono de 1876 é a primeira genial criação de Nietzsche: seu ato magnânimo. Em estilo aforismático, o livro abriu a série dos escritos filosóficos, culminando na obra prima: Assim Falou Zaratustra (1883).

Ao ancorar sua imagem no herói Prometeu, reinscreveu-se na longa tradição dos livres espíritos na modernidade. Qual o traço, a marca, de Prometeu onde Nietzsche ancorou sua identificação, seu “Eu” elevado e divinizado? A resposta pode ser encontrada em O Nascimento da Tragédia, livro princeps, publicado em 1872. Opondo os dois maiores representantes do período heroico-trágico, Prometeu e Édipo, o jovem filósofo demonstrou sua preferência.

Prometeu, herói trágico exemplar, criou as condições para o bicho homem se reconhecer como ser humano no mundo da cultura. O mito instaurou a condição para “os homens, alçando-se ao titânico, conquistar por si a cultura e obrigar os deuses a se aliarem a ele, porque, em sua autônoma sabedoria, ele tem na mão a existência e os limites desta. O homem, artista titânico, encontra em si a crença atrevida de que podia criar seres humanos e, ao menos, aniquilar deuses olímpicos: e isso, graças à sua superior sabedoria, que ele (Prometeu), em verdade, foi obrigado a expiar pelo sofrimento eterno”.

Nietzsche destacou que o final de Édipo e Prometeu são bem distintos. Édipo perfura os olhos com o broche da esposa-mãe e vai para o exílio em Colono cumprir a autopunição. No instante final, Édipo se transfigura em espírito e desaparece. O sofrimento de Édipo encontrou uma redenção final e ensinou que o homem não pode transgredir o nomos (a lei), sob pena de ser banido do convívio social e exilado de sua terra.

O castigo de Prometeu é de outra ordem. O sofrimento não é abolido com a redenção ou transfiguração. O titã Prometeu paga, cotidianamente, o preço de seu atrevimento: roubar o fogo dos deuses e presentear os mortais. O fogo que forjou a cultura, os humanos receberam por ato de sacrilégio: “e assim, o herói nos ensina que o primeiro problema filosófico estabelece uma penosa e insolúvel contradição entre o humano e o divino, e esta contradição se impõem como um bloco rochoso à porta de cada cultura”.

Contradição que o filósofo levou às últimas consequências às sombras dos limoeiros em Sorrento. Coisas Humanas, Demasiadamente Humanas é o livro que se ocupa exclusivamente do que é humano sem referência transcendental, sem justificativa divina e/ou científica. A filosofia de Nietzsche é, de fato, para espíritos livres, tal como indicada no subtítulo.

Livros e Lugares – Caderno de Domingo – Jornal de Piracicaba – 03/mai/2015