Demasiado Humano em Sorrento – 2

Demasiado Humano em Sorrento – 2

No artigo anterior destaquei que Nietzsche realizou no sul da Itália, o trabalho de luto decorrente da ruptura de amizade e ideais comum com Richard Wagner. Luto da almejada carreira universitária na Basiléia e da mudança no campo de sua investigação e interesse: da filologia para filosofia. Luto igualmente do elevado grau de idealização que o mantinha cativo na filosofia de Schopenhauer.

Dois anos antes de embarcar para Sorrento (outono/1876), Nietzsche enviou a 3ª Consideração Extemporânea (Schopenhauer como Educador) em anexo à carta endereçada à amiga condessa Malwida von Meysenbug, Foi em companhia da condessa que ele se refugiou no dolce far niente junto ao golfo de Nápoles no mar Tirreno. Ela ocupou também a função de parteira do livro que o filósofo escreveu durante a estadia no sul: Humano, Demasiado Humano.

Os sinais deste momento de crise existencial precedentes à viagem e, ao mesmo tempo, os de sua recuperação e superação, podem ser encontrados na referida carta: “aos poucos vou conseguindo encontrar o tom de minha voz na escrita. Estou certo que meu projeto filosófico irá libertar a língua de muitos que por ventura serão meus leitores. Farei com que aprendam a falar de coisas que os homens não esquecerão tão depressa e que estão sepultadas, desaparecidas na mais absoluta indiferença, como se não existissem”.

Na sequência, interrogou os possíveis obstáculos em seu caminho e deixou transparecer um traço de seu caráter, sua nobreza: “O que poderá atrapalhar meus planos? Meu desejo é conseguir ver com clareza o emaranhado sistema de antagonismo que constitui o chamado ‘mundo moderno’. Como não tenho ambição política para cargos públicos e nem interesse no status social, isso não representa perigo e nem pode me atrapalhar. Nada poderá me deter pois não serei obrigado a fazer concessão ou me calar”.

Prosseguiu: “Posso dizer tudo o que penso, e quero provar até que ponto meus contemporâneos, tão orgulhosos da liberdade de pensamento, são capazes de suportar os meus pensamentos livres”.

Concluiu, predizendo: “Não peço demasiado à vida; não lhe peço fartura supérflua; mas, em troca, espero que os próximos anos viveremos algo que nos será invejado pelo passado e pelo futuro. Contra todo o meu merecimento, a deusa Fortuna me agraciou com excelentes amigos”. Amigos com os quais viveu em Sorrento e por lá nasceu o primeiro rebento deste desejo enunciado: Coisas Humanas, Demasiadamente Humanas.

As 4 Considerações Extemporâneas, escritas no período que antecedeu a viagem, são ensaios que serviram para encontrar o tom enunciativo de seu discurso. A escrita do Humano, Demasiado Humano abriu a série de escritos filosóficos do genial pensador alemão e materializou seu estilo aforismático.

O subtítulo escolhido para o livro definiu, de antemão, o destinatário: Um Livro Para Espíritos Livres. A liberdade de espírito requerida aos virtuais leitores continua extremamente atual. É preciso cultivar o desejo do livre pensar, não ser tutelado por nenhum ideal político, religioso, científico ou filosófico, para adentrar no território do pensamento nietzschiano.

No Crepúsculo dos Ídolos, livro derradeiro, esta exigência do espírito livre aparece nos seguintes termos: “é conhecida minha exigência desde o princípio: que o leitor possa se situar para além do Bem e do Mal, que tenham abaixo de si a ilusão do juízo moral. Esta exigência deriva da premissa: não existe fato moral. O julgamento moral é uma interpretação dentre outras; na verdade, é uma má interpretação pois exige a ignorância dos valores que pretende afirmar”.

A recusa da moral como interpretação hegemônica, legitimada na oposição entre os valores ideais do Bem e do Mal está no cerne da escrita do livro gestado e, em partes, parido em Sorrento na companhia da condessa Malwida e dos amigos Peter Gast e Paul Rée. Demasiado Humano é um livro exigente: requer um trabalho de luto dos ideais morais, uma desconstrução das identidades valorativas que se fundamentam na distinção metafisica entre o Bem e o Mal.

No prólogo, escrito em Nice na primavera de 1886, dez anos depois da primeira publicação, afirmou: “Nenhum psicólogo e leitor de signos deixará de perceber por um instante em que lugar situar o presente livro. Este livro alemão soube encontrar leitores em outras terras pois é muito exigente aos alemães atuais. Exige pessoas que não estejam atormentadas por uma obrigação boçal, ele pede sentimentos delicados e tem necessidade do supérfluo, da superfluidade de tempo, de clareza no céu e no coração”.

Livros e Lugares – Caderno de Domingo – Jornal de Piracicaba – 19/abr/2015