Zaratustra, o canto trágico de Nietzsche – 8

Zaratrusta 8

No canto Das Mil Metas e da Única Meta encontramos a marca registrada do nosso herói Zaratustra: um viajante, conhecedor de muitos países com seus respectivos povos e modos de valoração. O autor de Assim Falou Zaratustra também foi um exímio viajante: as debilidades físicas de Nietzsche exigiam uma existência andarilha em busca do sol pois as rígidas mudanças climáticas na região central da Europa faziam com que o autor se deslocasse em direção ao sul. Em diferentes lugares, diferentes livros foram escritos. O Andarilho e sua Sombra, publicado em 1880, é um bom exemplo.

Já destaquei nesta série o lugar em que foi composto a primeira parte dos cantos de Zaratustra que elegi para comentar a personificação do herói trágico, bem como o contexto histórico-temático do livro. No livro-testamento (Ecce Homo) Nietzsche apresentou Zaratustra como seu filho bem amado e o descreveu do seguinte modo: “Somem-se o espírito e bondade de todas as grandes almas em uma: todas juntas não seriam capazes de produzir uma fala de Zaratustra. Tremenda é a escala em que ele se move; ele viu mais longe, quis mais longe e pôde mais longe que qualquer outro homem. Ele contradiz com cada palavra o mais afirmativo dos espíritos; nele todos os opostos se fundem numa nova unidade. Não há sabedoria, pesquisa da alma ou arte do discurso antes de Zaratustra”.

Em suas viagens, Zaratustra apreende que os modos de valoração são construídos historicamente como forma de efetivação da vontade de poder.  E que um determinado povo tem sua própria tábua de valores que o diferencia de seus vizinhos de outros territórios. Tendo descoberto, através de suas andanças, o bem e o mal de muitos povos, o herói chega à conclusão de que o bom e o mau são critérios de julgamento que estabelecem a medida de valor da existência. Nenhum povo poderia viver sem os valores morais e o modo de valoração é diferente em cada região, Estado e Nação.

Bom e mau são juízos de valor sensível, dependem da experiência corporal individual. Bem e mal são juízos de valor inteligível, dependem dos ideais morais que regulam o comportamento coletivo. “Muito do que um povo considera bom, outro considera infâmia e escárnio: eis o que achei. O que para um é considerado mau, para outro é motivo de honras cor púrpura. Jamais um vizinho compreendeu o outro: sempre a alma de um povo se admirou com a loucura e a maldade de outro povo. Sobre cada povo está suspensa uma tábua de valores: é a tábua de suas superações e triunfos, a voz de sua vontade de poder”.

Se o bem e o mal são critérios para legitimar e condenar as ações individuais, cada povo é um coletivo que se forma a partir do que consideram bom ou mau. O comportamento individual está submetido à tábua de valoração coletiva. “Em verdade, os homens deram a si mesmos todo o seu bem e seu mal. Em verdade, eles não o tomaram e não o acharam, não lhes sobreveio como uma voz do céu. Valores foi o homem que primeiramente pôs nas coisas, para se conservar – foi o primeiro ser a criar sentido para as coisas e ações, um sentido humano. Por isso são chamados homens, isto é, o estimador, o criador de valores”.

Neste aspecto, Nietzsche fez parear o sentido da palavra alemã “mensch” (homem) com a palavra latina “mensura” (ato ou efeito de medir) e, por homofonia, definiu o homem como um criador de valores – clara referência à clássica definição do filósofo Protágoras: “o homem é a medida de todas as coisas”. A existência de todo e qualquer valor como critério de afirmação de sentido determina o ser humano como tal. Só é humano na exata medida de sua capacidade de criar e reproduzir valores: “estimar (valorar) é criar: escutai isso, ó criadores. Apenas através do estimar existe valor; e sem o estimar seria oca a noz da existência”.

Os valores são históricos e por essa razão são passíveis de mudança e transformação. Para criar é preciso também destruir: um novo valor só entra na história por oposição e destruição de outro que o antecede. Para mudar o modo de valoração é imprescindível mudar os criadores de valores. “Criadores foram primeiro os povos e somente depois os indivíduos; em verdade, o indivíduo mesmo é ainda a mais nova criação. Outrora mantinham os povos uma tábua de valores acima de si. O amor que quer dominar e o amor que quer obedecer criaram juntos essas tábuas”.

Mil metas (valores) existem para guiar as ações dos indivíduos em coletividade. Essa é a constatação, advindas de suas andanças pela terra, do herói Zaratustra. Falta criar uma única meta: que cada um, em sua radical singularidade, possa assumir o compromisso de criar valores que deem sentido e significação à sua própria existência. Fazer da vida uma obra de arte é a única possibilidade de romper com a consciência de rebanho que caracteriza os ressentidos.

 Livros e Lugares – Caderno de Domingo – Jornal de Piracicaba – 26/out/2014 – Ilustração: Erasmo Spadotto