Privilegiado por ter, desde a graduação em filosofia, bons professores como instrutores e guia na grande aventura de ler os livros, cartas e fragmentos póstumos do filósofo Friedrich Nietzsche, meu encontro com a sua escrita foi impactante e paixão à primeira vista. Amado, odiado, expropriado, deturpado, incompreendido. Seus escritos exigem posição ética irredutível do leitor: amar a vida como ela é, destituída de todo e qualquer ideal. Sua filosofia é e continuará extemporânea na história das idéias.
Os livros de Nietzsche exigem fôlego do leitor e um forte desejo de entregar-se livremente para desconstrução dos ideais que sustentam a história da modernidade. Nossa própria identidade moderna, solidamente construída desde o século 17, é abalada pelas trombetas anunciadoras do super-homem, da vontade de poder e do eterno retorno.
No artigo anterior apresentei o autor por ele mesmo e sua apreciação sobre o livro Assim Falou Zaratustra: “Talvez se possa ver o Zaratustra inteiro como uma música; certamente um renascimento da arte de ouvir era precondição para ele; entre minhas obras ele ocupa um lugar à parte; com ele fiz à humanidade o maior presente que até agora lhe foi feito. Esse livro, com uma voz de atravessar milênios, é o livro mais elevado que existe: autêntico livro do ar das alturas; é também o mais profundo”. Hoje destaco a posição de dois mestres com os quais aprendi a ler Nietzsche e assim agradeço publicamente o bem que me fizeram.
No livro Zaratustra: Tragédia Nietzschiana, resultado de longa pesquisa e convivência com a escrita do filósofo alemão, Roberto Machado apresenta com suavidade e delicadeza o contexto filosófico, resgatando com mestria e genialidade o clássico período pré-socrático. Define o personagem de Nietzsche como enunciador do pensamento trágico e conduz o leitor ao labiríntico Zaratustra. É no espírito das tragédias gregas do século 5 a.C. que o Zaratustra precisa ser situado. E, em especial, na leitura filológica que Nietzsche realizou do mito de Apolo e Dionísio para defini-los como impulso originário de toda criação artística.
A forma narrativo-dramática é destacada como escrita poética (do grego poíesis, ação de fabricar, construir um objeto artesanalmente, composição). Ao criar o Zaratustra, Nietzsche “não está interessado em renovar ou modificar os conceitos da filosofia; seu objetivo principal é libertar a palavra da universalidade do conceito, construindo um pensamento filosófico através da palavra poética, através do uso do aforismo, do fragmento e do ensaio. O projeto é fazer da poesia o meio de apresentação de um pensamento filosófico não conceitual e não demonstrativo (argumentativo). Um pensamento emancipado da razão iluminista”.
Zaratustra é um herói trágico: combatente, lutador e apolíneo. Ao final de um percurso de aprendizado do pensamento trágico, diz sim à vida como ela é (sem oposição de valores transcendentais). Para além do bem e do mal, Zaratustra afirma poeticamente o tempo do eterno retorno. Trágico é a condição humana por excelência. No sofrimento, dizer sim à vida e ultrapassar, ir além, superar. Não se trata de resignação e sim de superação. Não se trata de subtrair a dor da existência e sim afirmá-la para além do sofrimento. O super-homem é uma atitude ética fundamental e não um estado de ser, personificado numa identidade estável e imutável.
Na coleção Folha Explica, Oswaldo Giacóia Júnior fez breve e certeira introdução a Nietzsche destacando o percurso da escrita de cada um dos seus livros e dos temas/conceitos centrais de sua filosofia. Assim Falou Zaratustra é o livro que provoca mais dificuldades à interpretação e o mais exigente para o leitor. “Nele os ensinamentos e experiências do personagem título são apresentados como um drama em prosa, em cuja narrativa se combinam os mais variados elementos estéticos de gênero, forma e estilo. Nietzsche explora ao infinito a rítmica, a sonoridade e os matizes da língua alemã e, ao mesmo tempo, recorre à encenação teatral, a formas diversas de narração, à poesia, ao canto, à dança, à sátira e à paródia e, sobretudo, a intertextualidade para criar novas e surpreendentes significações”.
Com a intransigência do profeta Zaratustra, Nietzsche reedita sua crítica a todas as esferas da tradição cultural. O personagem é porta-voz da vontade de poder, do eterno retorno do mesmo e do além-do-homem. “A ação combinada desses três ensinamentos produz o desmascaramento e a ruína da hipocrisia que caracteriza a cultura moderna. O livro pode ser compreendido como a mais radical recusa dos valores e ideais de que se orgulha o homem moderno”.
Ainda uma palavra sobre o nome do personagem. Nietzsche escolheu a figura histórica que viveu na Pérsia e do qual pouco se sabe. Num dos livros que ele leu sobre o profeta persa encontra-se a seguinte descrição: “Zaratustra nasceu na cidade de Urmi, no lago do mesmo nome. Aos trinta anos de idade deixou sua terra natal e foi para o leste, para a província de Ária, onde passou dez anos na solidão das montanhas”. No Prólogo, Zaratustra decide descer da montanha e iniciar seus cantos em louvor ao super-homem.
Nas próximas semanas, apresentarei alguns cantos de Zaratustra. Os cantos que proclamam o tempo do para além do homem idealizado pelo cristianismo e pelo cientificismo iluminista. Zaratustra é o arauto do tempo em que cada ser humano seja capaz de superar a si mesmo, ir além de suas próprias forças e inventar-se do nada que o constitui. Nada mais extemporâneo no contexto histórico em que vivemos!
Livros e Lugares – Caderno de Domingo – Jornal de Piracicaba – 14/set/2014 – Ilustração: Erasmo Spadotto