Zaratustra, o canto trágico de Nietzsche

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Friedrich Nietzsche, em Turim no de 1887, antes do colapso neurológico que o deixou em estado vegetativo por dez anos, escreveu: “Comparada com a música, toda comunicação com palavras é vergonhosa; as palavras diluem e brutalizam; as palavras despersonalizam; as palavras tornam o incomum comum”. Assim Falou Zaratustra: um livro para todos e ninguém, escrito em quatro partes no período de 1883 a 1885, restitui a musicalidade das palavras. Os cantos de Zaratustra são palavras personalizadas em notas musicais. Como um escultor, Nietzsche lapidou a escrita até a sua condição genética: a oralidade, o som das palavras e sua melódica composição. Suas palavras portam a condição primária da linguagem: o ser humano, o bicho falante, é imerso pelo som no oceano da língua. Somos batizados na linguagem, imersos na sua correnteza de significados e sentidos.

A musicalidade do texto, a sonoridade das frases, foi insistentemente perseguida na composição da obra. É um livro para ler em voz alta, pois Zaratustra não fala, canta.  Zaratustra é para ser lido como se ouve musica operística. A arquitetura do livro tem afinidade com a partitura de obras musicais.

O compositor Gustav Mahler disse que o Zaratustra de Nietzsche “nasceu completamente dentro do espírito da música”. Richard Strauss criou em 1896 o poema sinfônico para grande orquestra composta literalmente a partir de nove cantos escolhidos do Assim Falou Zaratustra. Ouvir o poema sinfônico de Strauss acompanhado da leitura de cada um dos cantos escolhidos é puro prazer estético. A Introdução, inspirada no Prólogo do Zaratustra, tornou-se mundialmente conhecida como tema musical do filme 2001: Uma Odisséia no Espaço (1968) de Stanley Kubrick. Considero o livro a magnífica ópera trágica composta por Nietzsche, o amigo e inimigo do compositor Richard Wagner. Zaratustra é personagem de ópera, aquele que Nietzsche esperava e espelhava nas óperas de Wagner.

Convido os leitores a um percurso em alguns cantos de Zaratustra. A seleção acontece por critérios estéticos e existenciais: os mais belos e marcantes em minha longa trajetória como leitor de Nietzsche. Hoje vou restringir-me ao contexto com apresentação do autor por ele mesmo e a descrição que fez de sua obra principal.

No livro-testamento Ecce Homo: como alguém se torna o que é, escrito em 1888, Nietzsche se apresenta: “Sou um discípulo do filósofo Dionísio, preferiria antes ser um Sátiro a ser um Santo; sou o primeiro psicólogo da Europa, antes de mim não havia psicologia. A última coisa que eu prometeria seria melhorar a humanidade; derrubar ídolos (minha palavra para ideais) é meu oficio. Sou por natureza guerreiro, possuo um pathos (paixão) agressivo, agredir é parte de meus instintos; sou muito inquiridor, muito duvidoso, muito altivo para me satisfazer com respostas simplificadas pelo discurso moral e religioso. Em mim, o ateísmo é óbvio por instinto; não sou um homem, sou uma dinamite”. Dispensa mais apresentações!

Também em Ecce Homo encontramos a descrição de cada um dos livros por ele escrito tal como estivesse apresentando os seus filhos. Cada livro é um filho que nasceu de um determinado período de gestação. Zaratustra é o filho mais amado, afirmação de seu gênio criador. Os pesquisadores classificam a obra filosófica de Nietzsche em dois períodos específicos: os livros escritos antes e depois do Zaratustra. Ele é o ponto axial em torno do qual giram os conceitos fundamentais do pensamento nietzschiano: vontade de poder, super-homem e eterno retorno.

“Talvez se possa ver o Zaratustra inteiro como uma música; certamente um renascimento da arte de ouvir era precondição para ele; entre minhas obras ele ocupa um lugar à parte; com ele fiz à humanidade o maior presente que até agora lhe foi feito. Esse livro, com uma voz de atravessar milênios, é o livro mais elevado que existe: autêntico livro do ar das alturas; é também o mais profundo, o nascido da mais oculta riqueza da verdade, poço inesgotável onde balde algum desce sem que volte repleto de ouro e bondade. Nele não fala nenhum profeta, nenhum daqueles horrendos híbridos de doença chamados fundadores de religiões. É preciso ouvir corretamente o som que sai desta boca, esse som alciônico (de alcíone, ave fabulosa na mitologia, de canto plangente, considerada pelos gregos de bom augúrio). Aí não fala um fanático, aí não se prega, aí não se exige fé: é de  uma infinita plenitude de luz e profundeza de felicidade que vêm gota por gota, palavra por palavra – uma delicada lentidão é a cadência dessas falas”.

Numa carta de 1884, ao amigo Erwin Rohde, Nietzsche escreveu: “Os três atos do meu Zaratustra estão terminados. É uma espécie de abismo futuro, algo de terrível dentro da sua felicidade. Todo ele é absolutamente meu. Não há exemplo, comparação ou precedente. Quem chegar a viver meu livro (meu filho amado), voltará ao mundo com diferente perspectiva. Quero fazer-lhe uma confissão: com ele, creio ter levado o idioma alemão à sua máxima perfeição. Repara bem e me diz se alguma vez viu tão unido em nosso idioma, a força, a flexibilidade e a musicalidade. Meu estilo é um jogo de simetrias de todas as espécies, e um saltar e zombar dessas mesmas simetrias, chegando ao ponto de escolher até as vogais que possam garantir a musicalidade do texto”.

Livros e Lugares – Caderno de Domingo – Jornal de Piracicaba – 07/set/2014 – Ilustração: Erasmo Spadotto