A perspectiva trilhada por Dalí no movimento surrealista foi experimentar as possibilidades da “atividade paranóico-crítica”. Deste modo, estabeleceu um campo (objeto) denominado por ele de “irracionalidade concreta”. Numa carta (07/1933) a André Breton, Dalí expressou sua incondicionalidade surrealista definindo suas posições no movimento. Para tanto, indicou um equívoco fundamental: “Todo o equívoco parece-me provir da confusão de dois fenômenos determinantes que vou simplesmente tentar situar separadamente. Considero meu caro amigo Breton, que tudo o que foi e tudo o que pode ser feito atualmente de precioso, de substancial, de inteligente e de realmente fenomenal provém, como se sabe entender, mesmo que se recuse a sabê-lo e a entendê-lo, de dois grandes fenômenos geniais, de absoluta genialidade, que se chamam Pablo Picasso e Giorgio de Chirico”.
Ao apontar suas referências estéticas no trabalho de Picasso e Chirico, Dalí definiu seu pressuposto imagético para conceber a “atividade paranóico-crítica” como método de criação. Esse argumento demonstra que sua posição no movimento estava determinada pela matriz pictórica e não literária. Em matéria de poesia, a paixão do jovem catalão eram os escritos de Frederico García Lorca.
No ensaio Novas Considerações Gerais Sobre o Mecanismo do Fenômeno Paranoico do Ponto de Vista Surrealista, publicado em 1933, Dalí descreveu o “drama poético” do surrealismo como um antagonismo marcado por dois tipos de confusão que se apresentam como princípios contraditórios: a posição passiva do automatismo mental, expresso pela concepção de escrita automática; e a posição ativa e sistemática, ilustrada pelo fenômeno paranoico (as possessões). Demarcando suas posições estéticas admitiu que a assimilação do automatismo mental (inventado pelo dadaísmo) pelos surrealistas criou a possibilidade de pôr em funcionamento o pensamento involuntário e, assim, conquistou a liberdade do espírito pela suspensão de todo controle coercitivo da racionalidade cartesiana.
No entanto, tal conquista revelou- se uma estratégia estéril, pois, voltada sobre si mesma, não possibilitou atingir o plano de uma estética consequente com aquilo que pretendia instaurar. A experiência da escrita automática naufragou, segundo Dalí, no materialismo marxista que subjugou a espontaneidade dos primeiros anos de criação. Ao abraçarem as causas revolucionárias do Partido Comunista Francês, os surrealistas teriam perdido a potência revolucionária selvagem da escrita automática que fora catequizada pelo stalinismo. Disso concluiu, “são, portanto, esses tipos de objeções que tendem ainda conduzir o surrealismo na esfera de obscurantismo político e por consequência, a morte do fenômeno artístico”.
Por outro lado, sustentou que “o mecanismo paranoico não pode nos aparecer, do ponto de vista especificamente surrealista em que nos colocamos, senão como a prova do valor dialético desse princípio de verificação pelo qual passa praticamente no domínio tangível da ação o próprio elemento do delírio; senão como o penhor da vitória sensacional da atividade surrealista no campo do automatismo e do sonho”.
Neste ensaio, encontra-se uma referência explicita à tese de doutoramento do jovem psiquiatra Jacques Lacan: Da Psicose Paranoica em suas Relações com a Personalidade. A tese do amigo Lacan serviu como ponto de sustentação das posições assumidas por Dalí: a defesa da irracionalidade concreta que emerge da atividade imaginativa (característica fundante do fenômeno paranoico): “É dela (tese do Lacan) que devemos fazer, pela primeira vez, uma ideia homogênea e total do fenômeno, fora das misérias mecanicistas em que se atola a psiquiatria corrente. A obra de Lacan dá conta perfeitamente da hiperacuidade objetiva e comunicável do fenômeno paranoico, graças à qual o delírio adquire esse caráter tangível e impossível de contradizer que o situa entre os próprios antípodas do automatismo e do sonho.”
O grande marco da atividade paranóico-crítica na escrita de Dalí é o livro O Mito Trágico do Angelus de Millet. Considero um ensaio de filosofia estética da maior importância para reflexão ética consequente sobre o estatuto do imaginário nas artes e na filosofia contemporânea. Escrito em 1933, o manuscrito original se perdeu em 1941 horas antes da ocupação nazista na França. Trinta anos depois, o manuscrito foi reencontrado e publicado na íntegra pelo editor francês Jean-Jacques Pauvert. A edição espanhola de 1978, sob responsabilidade de Oscar Tusquets, é apresentada como a única a reunir abundante material gráfico de Dalí que ilustra as referências citadas ao longo do texto (comentário do próximo domingo).
in: série “livros e lugares” – Caderno Cultura do Jornal de Piracicaba,02/fev/2014