Salvador Dalí, um gênio escritor (4)

Concluindo a série sobre o genial escritor catalão, chegamos ao livro que arrasta consigo as condições trágicas da 2ª Guerra Mundial. Escrito em 1933, O Mito Trágico do Ângelus de Millet ficou para traz (e se perdeu) na fuga de Dalí para a Espanha quando as tropas nazistas ocuparam Paris. Hitler desfilando em carro aberto na Champs Elysées era o símbolo máximo da decadência política para os franceses. Em torno de um fenômeno de cultura de massa (imagem do Ângelus), Dalí construiu uma metáfora da política de massa (o nazismo como imagem).

 Reencontrado 30 anos depois, o livro é um ensaio de estética com várias camadas sobrepostas exigindo do leitor uma postura arqueológica. Ângelus é o título do quadro pintado por Jean-François Millet entre 1857/59 e considerado como uma das imagens mais populares do consagrado artista fundador da Escola de Barbizon, região campesina francesa situada no encantador bosque de Fontainebleau (refúgio dos pintores entediados com a vida urbana parisiense).

Dalí reinterpretou dezenas de vezes (em telas, desenhos e palavras) a cena retratada por Millet. Constatou que a imagem criada por Millet bateu todos os recordes de reprodução em papel cartão, louças (copos, xícaras, travessas), sombrinhas, jogos de lençol e toalhas: um verdadeiro fenômeno de massa. Diagnosticou um “estado de epidemia” provocado pela imagem, aparentemente ingênua, de um homem e uma mulher que interrompem suas atividades no campo para reverenciar a hora do ângelus num horizonte crepuscular. “Nada mais surpreendente, desde um ponto de vista materialista, que a indiferença e a desconsideração com que tem sido tratado esse fenômeno único na história da pintura: o poder obsessivo exercido no mundo inteiro e na imaginação das massas, a imagem, aparentemente insignificante, do Ângelus de Millet. É evidente que o Ângelus se apresenta sempre com esse caráter obsessivo, de hiperevidência mórbida e, até certo ponto, sempre delirante.

No livro procurou responder a seguinte indagação: “Como explicar, conciliar essa unanimidade obsessiva, essa violência inegavelmente exercida sobre a imaginação, essa força, essa eficácia absorvente e exclusivista no reino das imagens? Como conciliar, insisto, essa força, essa fúria das reproduções com o aspecto miserável, tranquilo, imbecil, insignificante, esteriotipado, convencional ao limite do Ângelus de Millet? Como um antagonismo tal não tem sido motivo de inquietude?”

Questões instigantes para fazer um diagnóstico do fenômeno delirante que a imagem do Ângelus de Millet produzia. Dalí chamou a atenção dos leitores para o “caso O Ângelus”, por considerá-lo sem precedentes na história da pintura por sua originalidade e singularidade de acontecimento. Relacionou esta imagem com o conjunto das obras de Millet, para identificar as tendências eróticas: “tendências que parecem presidir o conteúdo latente do ângelus”.

Conteúdo latente e conteúdo manifesto, distinção claramente remetida à análise freudiana dos sonhos. Dalí utilizou o artigo Leonardo da Vinci e uma Lembrança de sua Infância, publicado por Freud em 1910, como referência para investigar as tendências eróticas latentes na ingênua cena crepuscular. Seu exame crítico definiu dois elementos fundamentais: “os atavismos do crepúsculo” e “a atitude expectante da mulher”. O primeiro é um arquétipo melancólico (sentimento crepuscular) identificado em literatos mais senso comum. Destacou suas lembranças infantis e a força decisiva que a imagem crepuscular Ângelus produziu em suas primeiras atividades literárias: “o crepúsculo e o som dos insetos constituem o leitmotiv obsessivo tanto das prosas poéticas como dos raros poemas ritmados que escrevi desde os 14 anos de idade”.

O segundo elemento (a atitude expectante da mulher) foi analisado extensivamente por associações imagéticas: desde as poses histéricas das esculturas, sobretudo aquelas encontradas em bazares (bibelô); as poses encontradas abundantemente em postais; até a atitude do inseto louva-a-deus (longamente comentado e com reproduções de desenhos que demonstram o comportamento canibalesco dessa espécie). Essa atitude da mulher no quadro de Millet reúne, para Dalí, dois níveis de significação: exibição de superioridade e agressividade iminente.

Aplicando o método psicanalítico, analisou a condição trágica do Ângelus, elevando a imagem à categoria de mito fundador. Desse modo, fez a passagem da experiência surrealista com a palavra para o domínio das imagens. Reconheceu o fenômeno paranoico no campo poético pela potência contagiosa, epidêmica da imagem. Num olhar micro-estético, o gênio catalão visualizou (sem o saber) a potência aniquiladora do fascismo que o mito da raça pura ariana exerceu pela exclusão cruel dos judeus. O nazismo foi um fenômeno delirante, um surto paranóico em massa, sem precedentes na história ocidental.

in: série “livros e lugares” – Caderno Cultura do Jornal de Piracicaba,09/fev/2014