Desde criança aprendi a conjugar saber e sabor. Na escola primária, Dona Wandira ensinava que a leitura era o alimento para o espírito. No dia em que ganhei meu primeiro livro, ela construiu a mais bela metáfora que marcou decisivamente minha existência: um livro é semelhante a um prato de comida. Glutão que ainda sou, compreendi de pronto a metáfora e não há um só dia que passo sem ler. Alimento-me com palavras do mesmo modo que busco no ato de alimentação os sabores que me proporcionem o prazer do paladar.
Descendente de famílias italianas de pai e mãe, as casas de minha infância possuíam ampla cozinha, pois era o espaço de encontro e convivências. Tudo acontecia na cozinha: o fogão (à lenha e depois a gás) era uma espécie de altar onde se cultivava e cultuava o gesto valoroso da alimentação. Quando visitávamos parentes ou amigos, ao redor da mesa as relações eram tecidas e enlaçadas. Não importava a ocasião, estar junto era sempre motivo para comer.
O sabor do amor continha a poção de renovação dos laços afetivos pelo ato de comer juntos, comemorar. Até na hora da morte. Naquele tempo, o defunto era velado na própria residência e na maioria das vezes, na mesa da sala de jantar. E, mesmo nesta situação, o sagrado fogão não parava de funcionar. Enquanto alguns pranteavam o ente querido, outros se fartavam em macarronadas com frango ao molho, bolos e chá de erva cidreira para acalmar os mais desesperados. E a narrativa varava noite adentro até o sepultamento. Lembranças que envolviam o morto e faziam da morte uma celebração da vida. Cada um contava um caso, um fragmento de memória e, entre lágrimas e sorrisos, o luto era vivido no ambiente familiar.
Muito tempo depois, conheci os livros do filósofo alemão Friedrich Nietzsche, o único que soube conjugar saber e sabor ousando a verdadeira e decisiva questão: qual a relação entre filosofia e alimentação? Em seu livro-testamento publicado em 1888, Ecce Homo: Como alguém se torna o que é, Nietzsche afirmou que a salvação da humanidade dependia da questão da alimentação muito mais do que de todos os tratados filosóficos e teológicos já escritos na história da cultura. Admitia ler somente o que lhe dava prazer degustativo. Um livro bom é aquele que tem sabor. E, como o paladar é um órgão sensorial singular, cada um haverá de encontrar nos livros o que melhor lhe apraz.
A filosofia culinária foi inventada antes de Nietzsche se tornar um filósofo e tenho para mim que encontrou as bases conceituais para tudo o que escreveu sobre filosofia e alimentação em Jean-Anthelme Brillat-Savarin, no livro Fisiologia do Gosto publicado no final do século 18. Brillat-Savarian exerceu a função de advogado, juiz e prefeito de Belley na França e foi nomeado por Napoleão Bonaparte para Suprema Corte de Apelação em 1801, cargo que ocupou até sua morte em 1826.
Viajou por diversos países anotando os hábitos alimentares, costumes e comportamentos que serviram para escrever seu livro e fundar a ciência gastronômica. Com impecável humor e belíssimas tiradas anedóticas, esse clássico da literatura delineou o campo das relações entre filosofia e alimentação. O livro é composto por 30 meditações que recobrem temas como: dos sentidos envolvidos no ato de comer e beber, do apetite, dos alimentos em geral, teoria da fritura, da influência da dieta sobre o repouso, o sono e os sonhos, da obesidade, da história filosófica da culinária e finaliza com uma variedade de receitas recolhidas ao longo da vida do autor viajante.
Amante de livros e da gastronomia escreveu célebres aforismos: “Dize-me o que comes e te direi quem és”; “A descoberta de um novo manjar causa mais felicidade ao gênero humano que a descoberta de uma nova estrela”; “Os que se empanturram ou se embriagam não sabem comer nem beber”; “Quem recebe os amigos e não dá uma atenção pessoal à refeição que lhes é preparada não é digno de ter amigos”; “Entreter um convidado é encarregar-se de sua felicidade durante o tempo todo em que estiver sob nosso teto”.
Desconfio que a ausência de educação alimentar encontra-se diretamente relacionada à ausência do cultivo da leitura. Ou dito de outro modo, porque comemos sem saborear, acabamos por ler palavras sem sabor. Há livros que vendem como alimentos fast-food. Não temos paladar apurado para leitura e por isso, há uma espécie de retorno ao ato de comer para encher o estômago tal como um primitivo das cavernas. Se quiser saber o modo de valoração da vida, observe o modo como as pessoas comem, dizia Nietzsche. Ousaria acrescentar: observe o que elas lêem, isto é, na melhor das hipóteses quando lêem. Pois como nos ensinou o poeta, o pior analfabeto é aquele que saber ler e não lê. O pior da alimentação é aquele que come sem saborear.
“Saber e sabor: filosofia culinária” – Caderno Cultura do Jornal de Piracicaba 15/jun/2014
ilustração: Erasmo Spadotto