O Tempo e o Templo (1)

O lugar onde o tempo adquiriu o caráter de eternidade é no templo. No templo, o tempo é durável, permanente e transcendente: nele o tempo não passa. Não se sai de um templo do mesmo modo em que se entrou. Sua função primordial é realizar o que os antigos chamavam de metanóia: transformação interior do pensamento ou caráter, pois no templo o tempo está contido para que qualquer um possa vivenciar o eterno como experiência espiritual.

Inicio esta série narrando a experiência do tempo como exercício de espiritualidade: transformação de si mesmo. Por vários templos que conheci, por vivência em lugares diversos por onde passei e também em literaturas e pinturas, como formas de escrita da inscrição no tempo. Quer sejam no aspecto arquitetônico,iconográfico ou literário, o templo é o lugar por excelência da figuração do tempo como eternidade.

Convido os leitores deste espaço dominical a percorrerem diferentes representações de templos, igrejas e capelas. Por razões etimológicas, prefiro a palavra templo e não igreja. Templo amplia significativamente o substantivo igreja.

Derivado do grego ekklesia, igreja significa assembléia por convocação do povo, guerreiros, anfitriões ou fiéis. Igreja é o lugar onde pessoas se reúnem para uma assembléia. Do latim, ecclesia é o lugar de ajuntamento dos primeiros cristãos, os seguidores dos ensinamentos de Jesus Cristo. No sentido figurado, igreja designa um grupo de pessoas que têm as mesmas aspirações, as mesmas idéias, que seguem a mesma doutrina. Decorre daí nomear igreja o edifício onde se reúnem os fiéis para exercer o culto ao Deus uno e trino, criador de todas as coisas que existem no mundo.

Na antiguidade, templo designava um espaço descoberto e delimitado consagrado pelos áugures (sacerdotes ou sacerdotisas que realizavam predições sobre os desígnios dos deuses). Era também um edifício público construído para honrar e cultuar uma ou mais divindades. Tinha por função ser o lugar onde o tempo futuro era predito pelo áugure.

Sócrates, por exemplo, considerado o primeiro filósofo da história ocidental, narrou em sua defesa diante do tribunal de Atenas que estava passando pelo templo de Apolo em Delfos quando seu companheiro (Querefonte) de viagem o convidou a entrar naquele lugar consagrado para uma consulta oracular à sacerdotisa Pítia. O amigo perguntou se havia alguém mais sábio do que Sócrates. A resposta foi negativa.

“Quando ouvi aquele oráculo, pus-me a refletir assim: o que será que o deus quis dizer? Que sentido oculto pôs na resposta? Tenho consciência de ser nem muito nem pouco sábio; qual será então o significado do deus ter me declarado o mais sábio dos homens? Por longo tempo fiquei nessa incerteza sobre o sentido oracular; por fim, muito contra gosto decidi-me por uma investigação”. Sócrates procurou aqueles que eram considerados pela sociedade da época os mais sábios: políticos, poetas, artífices. Passou a interrogá-los em suas pretensas sabedorias.

Em cada investida concluía sobre o sentido do oráculo do templo de Apolo: “O provável, senhores é que, na realidade, o sábio seja o deus e o que ele queria dizer é que pouco ou nenhum valor tem a sabedoria humana. O que ele quis dizer é que o mais sábio dentre todos vós, homens, é quem, como Sócrates, compreendeu que sua sabedoria é verdadeiramente desprovida do mínimo valor”. Decorre daí a sentença socrática: “Sei que nada sei”.

Antes do advento da filosofia socrática no século 4 a.C., os poetas inventores das tragédias também fizeram seus heróis visitarem os templos para realizarem esse processo de transformação interior (metanóia) que mudam significativamente a relação com o tempo. Sófocles, por exemplo, criou uma situação em que Édipo, o clássico herói que sabia demais, desafiou o oráculo do templo de Apolo em Delfos. Quando soube que estava predestinado a matar o pai e desposar a própria mãe, Édipo resolveu fugir para que os desígnios não se cumprissem. O trágico herói, querendo escapar de sua sina, acabou por realizá-la. Nas tragédias há um combate entre o tempo dos deuses e o tempo dos homens. É no templo que este embate se constituía através das consultas oraculares.

O templo eterniza a tensa relação entre o mundo dos deuses e o mundo dos homens. É o lugar onde a relação encontra sua definição: é o campo no qual ocorre o eterno jogo de forças entre o divino e o humano. O tempo deste jogo é indefinido e condição essencial para o exercício da espiritualidade através do qual o humano se torna transcendente quer pela criação do próprio templo no tempo, quer pela transformação de si como ato de superação de suas próprias forças.

“Tempo e o Templo (1)” – Caderno Cultura do Jornal de Piracicaba 22/jun/2014

ilustração: Erasmo Spadotto