Com este subtítulo Georges Politzer publicou em 1928, aos 23 anos, sua Crítica dos Fundamentos da Psicologia. Recém chegado em Paris, vindo de Budapeste, com estadia em Viena para conhecer Sigmund Freud, o jovem húngaro fez sua entrada no círculo filosófico francês com um projeto de pesquisa e um propósito explícito: demolir as bases da psicologia científica e inaugurar a psicologia concreta.
O livro foi responsável por introduzir a psicanálise vienense em solo francês fora dos embates e resistência dos médicos psiquiatras e também da comunidade de psicanalistas recém praticantes. A psicologia concreta de Politzer tem como premissa básica que a vida psíquica dos humanos é dramática e, portanto, o drama deveria ser o objeto de estudo por excelência. O projeto foi enunciado numa leitura vigorosa e original do livro de Freud, A Interpretação dos Sonhos.
Filho de médico judeu militante da comuna de Budapeste, Politzer desembarcou em Paris em 1922 e participou da aventura surrealista. Ingressou no Partido Comunista Francês em 1929 e abandonou (por exigência do partido) o projeto de inventar a psicologia concreta. Durante a ocupação nazista atuou na resistência francesa. Foi preso, torturado e executado em praça pública em maio de 1942 e sua esposa foi deportada para o campo de concentração em Auschwitz.
O nome de Politzer é ainda lembrado por sua militância marxista: tendo sido também professor na pioneira Universidade Operária, ministrou aulas magistrais sobre o materialismo histórico aos trabalhadores das indústrias parisiense. Sua crítica aos fundamentos científicos da psicologia é pouco conhecida e foi um marco decisivo de toda uma geração de pensadores na filosofia contemporânea. Dentre eles, cito os nomes de Maurice Merleauy-Ponty, Jean-Paul Sartre, Jacques Lacan e Michel Foucault.
O ensaio crítico de Politzer é contundente em desmontar, peça por peça, o instrumental científico (método experimental) nas mãos dos psicólogos: “eles atrapalham-se no meio de aparelhos, ora se lançam na fisiologia, ora na química, na biologia; acumulam médias estatísticas e estão seguros de que, para adquirir a ciência, como para adquirir a fé, é preciso tornar-se estúpido. Entenda-se: os psicólogos são tão cientistas como os selvagens evangelizados são cristãos”.
Politzer considerava a crença na vida interior como o mito fundador de toda psicologia científica. A psicologia abstrata, aquela oriunda da aplicação do método experimental, não poderia sobreviver sem a mitologia da interioridade, quer seja entendida como consciência, processos mentais ou atividades cerebrais. Supor que a dimensão psíquica pode ser definida empiricamente pelo funcionamento da química mental é manter-se prisioneiro deste dogma de fé na interioridade. Desde Descartes, no século 17, a modernidade ocidental procurou identificar a atividade psíquica numa base anatômica e o grande eldorado das ciências biológicas foi conquistado pelos estudos do cérebro, base de sustentação para uma descrição empírica da psique.
O que será da psicologia com o advento das teorias cognitivas, sustentadas nas pesquisas da neurobiologia do funcionamento cerebral? A neuroquímica cerebral define o psiquismo como objeto da ciência psicológica? Qual a relevância de retomar as questões, sempre presentes, sobre os critérios de cientificidade da psique? Numa entrevista em 1965, Michel Foucault respondeu: “Eu diria que não acho necessário tentar definir a psicologia como ciência, mas talvez como forma cultural; isto se inscreve em toda a série de fenômenos conhecidos pela cultura ocidental há muito tempo, e nos quais puderam nascer coisas como a confissão, a casuística, os diálogos, os discursos, e os arrazoados que se podiam pronunciar em certos ambientes na Idade Média, nas cortes de amor, ou ainda nos salões do preciosismo do século 17”.
Pensar a psique e a psicologia como forma cultural implica em articular essas séries de fenômenos com as formações discursivas de nossa atualidade. Frente a crescente demanda de tratamento do sofrimento psíquico através da abusiva prescrição de psicofármacos e as novas categorias diagnósticas que estendem seus tentáculos aos mais profundos recantos da alma, seria bem instrutivo resgatar a invenção da psique pelos gregos: psykhé designa a alma, sopro de vida, princípio da vida, o vivente, o caráter, o temperamento, sede dos desejos, sentimentos e pensamentos. Desse modo, poderíamos pensar as atividades psíquicas como tudo aquilo que nos faz humano, demasiado humano: eis nossa condição dramática. Concreta é a psicologia que transcende ao reducionismo das posições hegemônicas que identificam o cérebro ao psíquico.
Livros e Lugares – Caderno de Domingo – Jornal de Piracicaba – 16/nov/2014 – Ilustração: Erasmo Spadotto