O luxo entre o vício e a virtude

O luxo é designado por seu caráter excessivo e está inserido entre as paixões passivas de controle administrativo pelos ideais estabelecidos pela razão e/ou pela fé. Luxuoso, luxuriante, luxúrias: paixões da alma emaranhada na posse de objetos e adornos que potencializam os prazeres dos sentidos, sobretudo, o prazer de olhar e ser olhado.

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No dicionário, luxo define uma maneira de viver caracterizada pela ostentação, por despesas excessivas, pela procura de comodidades caras e supérfluas, pelo gosto do fausto e pelo desejo de mostrar aos outros a posse e o gosto. Define também o objeto por seu valor raro, fora do comum. Designa o gastos e despesas supérfluas, irracionais, desordenadas. Qualifica o que é requintado, aprimorado, apurado, capaz de aumentar as possibilidades do prazer ou o conforto. Distingue-se por pertencer à esfera do que não é de modo algum necessário. Luxo se opõem portanto ao campo das necessidades.

O luxo é o primeiro dos sete pecados capitais estabelecidos no século VI pelo Papa Gregório Magno. Na condição de luxuria, há um amplo campo de significações relacionadas aos prazeres corporais: desde a sensualidade do desejo em si aos apelos da sexualidade (os prazeres da carne). O combate ao luxo, por mais paradoxal que seja, deu o tom a moral cristã durante o período medieval e, somente com a arte renascentista, o luxo adquiriu o estatuto que viemos a conhecer no período da modernidade.

No século 18, o problema do luxo foi interrogado com propriedade pelos filósofos do movimento iluminista. Marcados historicamente pela constituição do luxo no reinado de Luis 14, os pensadores franceses inventaram um modo de crítica ao luxo que deslocou o tema do eixo da moral cristã (na condição de pecado) para uma abordagem racional, reflexiva e política. Virou estratégia de combate ao ilusionismo da crença no pecado. O que se pode dizer, racionalmente, sobre a função social do luxo? Em torno do luxo entrelaçaram uma nova e determinante maneira de relacionar o desejo e o prazer fora do campo da moral religiosa.

Em 1736, Voltaire publicou o poema O Mundano ou Apologia do Luxo para decantar as conquistas dos tempos modernos: “Eu agradeço à Natureza sábia / Que, para meu bem, me fez nascer nesta época / Tão difamada por nossos pobres doutores / Esta época profana é perfeita para meus costumes / Amo o luxo e até mesmo a volúpia / Todos os prazeres, as artes de toda espécie / O asseio, o paladar, os ornamentos”. Concluiu demonstrando que o luxo é responsável pelo incremento do comércio, sendo, portanto, vantajoso para o desenvolvimento e a riqueza das sociedades.

A apologia do luxo tinha para Voltaire uma dupla estratégia: política e moral. O que permitiu fazer a apologia das conquistas da modernidade: a posse da liberdade como condição para se relacionar com os objetos do mundo pelo consumo e acumulo. E, ao mesmo tempo, a crítica moral à uma sociedade arcaica que valorizava a pureza, a frugalidade, a austeridade e a virtude dos antigos ascetas que renunciavam o prazer corporal como forma de purificação da alma pelo desapego dos bens materiais.

O alvo da Apologia ao Luxo de Voltaire era François Fénelon, arcebispo de Cambray na França. Fénelon criticava abertamente em seus sermões e livros publicados, o esbanjamento financeiro e desmandos administrativos no governo de Luis 14, em especial a construção do Palácio de Versailles (até hoje, o símbolo sublime do luxo). O arcebispo pregada uma ordem rígida para a sociedade ser regrada pela norma do bem comum: utopia social de um lugar onde não haveria espaço para o luxo nem a miséria. Condenava publicamente o desperdício, a fartura do excesso, como forma de ostentação do luxo. O cultivo do luxo corrompe os costumes e é incentivador de todos os vícios, apregoava o pastor.

Fénelon, metaforicamente, comparava o luxo à peste, como o que contamina e degenera a virtude se alastrando por todo tecido social: “o luxo envenena toda uma nação ao valorizar o supérfluo e seu acumulo. Esse vício, que atrai tantos outros, é louvado como virtude: ele dissemina seu contágio desde o rei até o último da ralé do povo. Os parentes próximos ao rei querem imitar sua magnificência; os grandes imitam os parentes do rei; as pessoas medíocres querem igualar-se aos grandes; os pequenos querem passar por medíocres; todo mundo faz mais do que pode; uns por ostentação, outros por má vergonha e para esconder sua pobreza. Toda uma nação arruína-se, todas as condições confundem-se”.

Por Fénelon, interpretado como causa atuante de todos os vícios e por Voltaire como virtude, o luxo era o tema central entre os defensores da moral cristã e os que lutavam por maior liberalidade dos costumes e as conquistas científicas, tecnológicas e artísticas da modernidade. Na Enciclopédia dos iluministas, por exemplo, o luxo encontrou uma definição simples e certeira: “Ele é o uso que se faz das riquezas e da indústria para se conseguir uma existência agradável”.

Saint-Lambert, autor do verbete luxo, argumentava que “o luxo contribui para a grandeza e a força dos Estados, e portanto, é preciso encorajá-lo, esclarecê-lo e dirigi-lo. O luxo moderado enriquece o Estado, desenvolve-o e sustenta-o. O Estado não é ameaçado enquanto as paixões que conduzem ao luxo permanecerem subordinadas ao espírito de comunidade”.

Outro combatente nesta querela do luxo foi Jean-Jacques Rousseau. Numa de suas visitas ao amigo Diderot (aprisionado na torre do Palácio de Vincennes) Rousseau leu na revista Mercure de France que a Academia de Dijon havia anunciado um prêmio para a melhor resposta à questão: “O restabelecimento das ciências e das artes contribui para aprimorar os costumes?” Em 28 de julho de 1750, Rousseau envia sua resposta: Discurso sobre as Ciências e as Artes. O texto foi contemplado com medalha de ouro e 300 libras. No Discurso, Rousseau interrogou o valor moral e político do luxo e forneceu lenha para a fogueira dos revolucionários de 1879. Com argumentos filosóficos de retorno ao natural, Rousseau fortaleceu a crítica de Fénelon e ascendeu o rastilho de pólvora que incendiou a Bastille.

A resposta de Roussseu à questão proposta é pela negativa: as ciências e as artes, advindas do Renascimento e conquistas da Idade Moderna, não contribuíram para aprimorar os costumes. Ao contrário, elas conduzem aos vícios e corrompe a moral natural, fundada numa concepção de vida regrada pelo mínimo e necessário para a existência em sociedade. A propriedade privada dos bens torna os seres humanos cruéis e violentos. Um quer mais que os outros e assim ostentar seu poder de dominação. O luxo é a expressão máxima da decadência da natureza humana: o homem nasce bom, a sociedade o leva à corrupção pelos caminhos do consumo e, por conseguinte, à maldade.

“As ciências e as artes nasceram de nossos vícios. O pecado de sua origem marcou fartamente seus objetos. O que seria das artes sem o luxo que as nutre? Nascido da ociosidade e da vaidade dos homens, o luxo caminha lado a lado com as ciências e as artes. O gosto pelo fausto se opõem a honestidade. Não é possível que espíritos degradados por preocupações fúteis possam transformar o mundo. Se tivessem força, lhes faltaria a coragem”.

Revista Arraso / Design & Decor; Ano 6; nº 46; 2º semestre/2014; publicação do Jornal de Piracicaba; ilustração: Maria Luziano (a imagem segue anexo)