O sonho de Goethe em Bolonha – 1

Veneza, aperitivo. Roma, prato principal. Nápoles, sobremesa. Palermo, ressaca.  Esta metáfora gastronômica servirá como roteiro em nosso percurso sobre o relato literário da Viagem à Itália do escritor Johann Wolfgang von Goethe.

bolonha

Após intermezzo de vacância dedicado ao cultivo do ócio, retorno a este espaço com o propósito de narrar a relação de livros com os lugares em que foram escritos e/ou gestados. Assim reinscrevo meu apreço por autores que viajaram e cultivam nesta atividade o valor de formação espiritual. Viajar é ir ao encontro do diferente e ser por ele interrogado. Os melhores relatos revelam os efeitos de estranhamento que a viagem proporciona ao viajante na condição de estrangeiro.

No livro Viagem à Itália, com esmerada edição em nossa língua pela Companhia das Letras, encontramos a fina flor do estilo literário de Goethe. Jean Phillipe Möller, comerciante de Leipzig, foi o codinome escolhido para o escritor embarcar numa odisseia existencial no território italiano em 03 de setembro de 1786. Não sem motivo o legendário herói de Homero foi seu companheiro de viagem.

Conhecer a Itália era a realização de um desejo infantil, minuciosamente arquitetado. Desde criança, Goethe ouvia o relato da viagem à Itália realizada por seu amado pai. Na fala de seu pai, acalentou o desejo de um dia também percorrer os caminhos italianos e neles encontrar a paixão de seu pai e a sua própria: a história da arte renascentista e, por extensão, a gênese da civilização ocidental.

A viagem de Goethe pela Itália é um acontecimento decisivo que instaurou descontinuidade na vida do mais reverenciado escritor da modernidade alemã, elevando-o ao panteão do romantismo. Há um Goethe antes e depois da viagem.

Filho de um renomado jurista, Goethe nasceu em meio a objetos decorativos que o pai trouxera de sua viagem à Itália em 1740. Lembranças materializadas e símbolos de incontáveis narrativas apaixonante. Nas lembranças do pai viajante, acalentou o desejo de conhecer os lugares por onde o pai passou e os objetos de arte por ele admirado. Em Veneza, por exemplo, Goethe recordou das brincadeiras quando criança com uma pequena réplica de gôndola em madeira, presente de viagem do amado pai.

Aos 25 anos de idade, Goethe publicou sua obra inaugural: Os Sofrimentos do Jovem Werther. De pronto, tornou-se celebridade por toda Europa e angariou uma legião jovens leitores. O impacto do suicídio do jovem personagem que não logrou êxito em sua primeira experiência amorosa foi fulminante. A identificação com os sofrimentos de Werther levou centenas de jovens no final do século 18 a passarem ao ato. A questão do suicídio entrou definitivamente na cultura moderna e as famílias dos jovens que se mataram começaram a responsabilizar o escritor.

O conflito social armado levou a mudar para Weimar: estratégica saída de cena. Lá conheceu a baronesa Charlotte von Stein, esposa do poderoso barão Von Stein, com quem iniciou um tórrido caso amoroso. Na condição de amante, foi iniciado pela baronesa nos códigos secretos da vida social na corte e, não tardou, recebeu a nomeação de chanceler do Conselho Secreto de Weimar. Entremeios a vida agitada da corte, arrumava tempo para estudar o pensamento filosófico de Spinoza e a redação de sua obra prima: a trágica desventura de Fausto e suas relações com Mefistófeles, a personificação do demônio.

Um sentimento de tédio, associado ao estado de apatia e desânimo, tomou conta do escritor. Somado a constatação de um cenário intelectual monótono e sem perspectiva de novidades, reascendeu nele o desejo infantil de conhecer a Itália. A decisão se impôs e poucos amigos foram comunicados da partida sem data de regresso. O desejo latente era viver um verdadeiro renascimento existencial.

“Atravessei voando, por assim dizer, as montanhas tirolesas, Verona, Vicenza, Pádua e Veneza conheci bem; Ferrara, Cento e Bolonha, apenas de passagem; de Florença, quase nada vi. O desejo de vir para Roma foi tão grande, crescendo tanto a cada minuto, que não pude me deter por mais tempo e passei três horas em Florença. Agora estou aqui, calmo, tranquilizado para toda a vida. Sim, pois pode-se dizer que uma vida tem início quando se vê com os próprios olhos aquilo que, em parte, se conhece muito bem”.

Nos próximos domingos, continuando esta série, destacarei alguns aspectos do relato da viagem de Goethe pela Itália para sustentar a tese de que esta viagem exerceu a função formativa em seu trabalho como escritor. Um divisor na experiência existencial e estilística do maior gênio do romantismo alemão.