O insistente desejo de praticar o ócio é um exercício de liberdade. Libertar-se das tarefas e demandas cotidianas é pôr à prova a capacidade de ser ocioso: o ócio requer uma suspensão temporária das atividades laborais rotineiras. Quando se está no ócio, o tempo flui sem a marcação cronológica: é a suspensão temporária da regência do deus Kronos.
No dicionário, o vocábulo ócio é designado semanticamente como cessação do trabalho; folga, repouso, quietação, vagar. É também um espaço de tempo em que se descansa, falta de ocupação e de disposição física, preguiça, moleza, indolência. Por derivação, em sentido figurado, ócio é trabalho leve e agradável. Nesta trama de significação, vagar é o sentido bem apropriado para designar o estar em ócio. Devagar, vagabundear, flanar, perambular.
No Livro do Desassossego, Bernardo Soares (heterônimo de Fernando Pessoa) indagou: “Por que é bela a arte? Porque é inútil. Por que é feia a vida? Porque é toda fins, propósitos e intenções”. A inutilidade é o estado do ser em ócio, por isso, o ócio é uma arte e requer, do ser ocioso, uma habilidade artística, criativa, imaginativa e em devaneios. Não sem motivo o ócio (a preguiça) é um dos sete pecados capitais.
A questão do ócio sempre foi tema recorrente na história da filosofia e da literatura na cultura ocidental. O cultivo do ócio era reivindicado na antiguidade grega e romana como próprio da virtude e, somente com o advento da moral cristã no período medieval, o ócio foi elevado a condição de vício e instituído como pecado. Lembremos que para os antigos, a filosofia e a poesia (literatura) é produto do ócio pois para ser filósofo e poeta era (é) preciso admitir a oposição entre vida ativa (trabalho) e vida contemplativa (ócio).
Dentre os livros que tratam do ócio como virtude e os que o abordam como vício, destaco o revolucionário panfleto O Direito à Preguiça, escrito por Paul Lafargue e publicado numa série de artigos em 1880 no jornal socialista L’Igualité.
Nascido em Cuba, Paul era filho de um francês e de uma judia. Enviado a Paris para estudar medicina, tornou-se um apaixonado militante socialista. Na época, os trabalhadores das oficinas parisienses trabalhavam em média 13 horas por dia e ainda estavam convencidos de que o trabalho em si mesmo era uma atividade dignificante e benéfica para o progresso social. Em 1868, casou-se com Laura, a filha caçula de Karl Marx e a publicação do panfleto foi tido como uma afronta ao sogro e às ideias por ele defendidas em especial no Manifesto do Partido Comunista.
Com O Direito à Preguiça, Paul levantou seu brado contra a visão hegemônica da santificação do trabalho, promovida por escritores de direita e de esquerda, por economistas liberais e socialistas tapados. Para ele, o trabalho dignifica o humano no limite imposto pelo ócio e o lazer. Quando não há mais condições de praticar o ócio e dedicar-se ao lazer, o trabalho tornou-se um valor em si e ao mesmo tempo, ferramenta para o trabalhador ser reconhecido como consumidor. Trabalhar para consumir é uma atividade alienada pois o trabalho visa um fim: obter bens, mercadorias marcadas por signos de status e poder.
O panfleto revolucionário de Laforgue foi redigido num tempo em que a burguesia industrial levava a exploração do trabalhador ao máximo na construção do modelo capitalista. O sucesso deste texto em Paris é infamante na medida em que interrogou o contexto histórico no período do 2º Império, governado por Napoleão III. Contexto de grande desenvolvimento do que viria a se constituir como capitalismo industrial através da intensificação da exploração do trabalhador e sua nova identidade de consumidor. Trabalhar para consumir e assim fazer a roda do progresso girar em alta velocidade. Vejam que estamos a falar do final do século 19.
Ao reivindicar um pecado como direito, o autor desmascara o que denominou como religião do trabalho ou o credo no trabalho como forma de dignificar o ser humano. O panfleto é iniciado de forma retumbante: “Uma estranha loucura apossa-se das classes operárias das nações onde impera a civilização capitalista. Esta loucura tem como consequência as misérias individuais e sociais que, há dois séculos, torturam a triste humanidade. Esta loucura é o amor pelo trabalho, a paixão moribunda pelo trabalho, levada até o esgotamento das forças vitais do indivíduo e sua prole. Em vez de reagir contra essa aberração mental, os padres, economistas, moralistas sacrossantificaram o trabalho. Na sociedade capitalista, o trabalho é a causa de toda degeneração intelectual, de toda deformação orgânica e psíquica”.
Ao contrário do que pregam os catequistas do trabalho, Laforgue foi um dos pioneiros a levantar a tese de que o excesso trabalho é a causa do enfraquecimento psíquico e dos sintomas de neurastenia predominante no advento do capitalismo industrial. O trabalho não fortalece e sim adoece.
Livros e Lugares – Caderno de Domingo – Jornal de Piracicaba – 16/nov/2014