O amigo e o bajulador

para a Adriana, minha amiga verdadeira.

 o amigo bajuladorO cultivo da amizade requer um trabalho preliminar: saber distinguir o amigo verdadeiro do bajulador, o falso. Este tema é recorrente na história da cultura desde as narrativas míticas, no pensamento filosófico e na literatura. Na atualidade, quando o valor da amizade é definido pela quantidade de seguidores que o indivíduo possui no facebook é conveniente resgatar o aspecto mínimo desta distinção. Sobretudo quando somos convocados a celebrar, com os amigos, as festas natalinas e de réveillon.

Amizade é designada como um sentimento de grande afeição, apreço e reciprocidade. Sempre pareada com o amor, a amizade envolve relações entre os humanos como grupo social e foi objeto de inquietação ao longo da história. Ela tece laços entre membros de uma família, comunidade ou Estado. Quando relacionada aos graus de parentesco parece condicionada por consanguinidade e herança do nome. Neste caso, não dependem da escolha. Quando deliberada por exercício de liberdade individual, adquiri o estatuto de camaradagem e companheirismo.

O tema da amizade é o centro em torno do qual giram o problema da escolha e, portanto, da liberdade. É sempre no campo da ética e da política que encontrarmos a amizade como preocupação predominante entre os pensadores da cultura. A amizade foi interrogada não tanto por seu oposto: quem é meu inimigo? O pressuposto elementar do sábio é reconhecer seu inimigo.

Nos textos filosóficos que a tradição ocidental nos legou, o tema é abordado pelo elemento insidioso que subjaz à amizade: o bajulador, o lisonjeiro; o que se faz passar por amigo afim de angariar algum benefício, tirar proveito próprio. Qual critério permite reconhecer o verdadeiro amigo, distinguindo-o da figura do bajulador, do lisonjeiro? Observemos que a questão da verdade está no cerne do tema, pois há supostos amigos que acabam por se revelar inimigos. Saber distingui-los é fundamental.

Dentre os textos disponíveis, indico como leitura natalina o tratado Sobre a Lisonja escrito por Plutarco no século 1 de nossa era. O texto estabeleceu uma tipologia das condutas e serviu como referência básica para o problema da distinção entre o amigo verdadeiro e as ações sórdidas do bajulador: o que alimenta nosso amor-próprio e nos conduz a sermos inimigos de nós mesmos.

Com a premissa: “a amizade deixa-nos facilmente cegos a respeito do que amamos”, Plutarco constatou que o “amor-próprio oferece à bajulação um vasto campo para nos atacar, e sob a aparência da amizade, dominar nossa confiança. Esse amor a si mesmo nos transforma em primeiro e maior dos bajuladores e facilita a entrada de estranhos, para obtermos deles os testemunhos e a aprovação da justa opinião que este amor-próprio tem de si mesmo. Todo homem, acusado com justiça de amar os bajuladores, ama a si mesmo apaixonadamente; este amor cego faz com que deseje e acredite possuir todas as perfeições”.

Depois de discorrer sobre as características próprias dos bajuladores/lisonjeiros, Plutarco retornou à premissa inicial: “é preciso arrancar do coração o amor-próprio e a boa opinião sobre nós mesmos, pois estes são nossos primeiros aduladores, que, abrindo a porta aos bajuladores estranhos, tornam-nos presas fáceis de seduzir”. A advertência do filósofo é de grande relevância para os tempos atuais. Pois, “ao considerarmos sempre nossas imperfeições, nossos defeitos e nossos vícios, sentiremos que temos necessidade, não de um bajulador que nos distribua elogios, mas de um amigo sincero que nos aponte os erros com franqueza”.

Neste ponto, o texto de Plutarco muda a direção argumentativa e caracteriza o amigo sincero, verdadeiro, como aquele que fala com franqueza. O filosofo resgatou para tanto a célebre figura do parresíasta (quem exercita a parresía, o dizer-a-verdade). O texto estabeleceu oposição entre o parresíasta (que tem a coragem de dizer a verdade, de ser franco no falar) e o bajulador. “Há poucos que tem a coragem de ser francos com seus amigos, que não procuram ao invés disso bajulá-los. E mais raro ainda aqueles que sabem empregar adequadamente (com justa medida) a franqueza, não utilizando-a com amargor e censuras. Pois, acontece com a franqueza mal administrada o mesmo que com certos remédios: ela aflige, atormenta inutilmente, e realiza dolorosamente o que a bajulação consegue com agrados. As censuras, assim como os elogios inoportunos, são sempre nocivas. É preciso que a franqueza seja temperada pela doçura”.

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Entro em férias desta coluna, desejando aos leitores que o natal seja um ato de renovação dos laços de amizade e, o próximo ano, de realizações plenas de verdade.

Livros e Lugares – Caderno de Domingo – Jornal de Piracicaba – 07/dez/2014