Desde os tempos de adolescência quando Freud leu o relato de viagem do poeta Goethe ao sul da Itália, cultivou o desejo de conhecer a ilha siciliana, Nápoles e Palermo. Na Autobiografia, publicada em 1925, o criador da psicanálise declarou que escolheu cursar medicina depois de ouvir uma palestra sobre o ensaio Da Natureza escrito pelo poeta alemão. A presença de Goethe nos escritos de Freud é invariável. Toda sua formação literária está marcada pelo romantismo do final do século 19 e, em especial, pelo renascimento na cultura alemã.
“Palermo foi uma orgia inaudita, que não se deveria conceder apenas a si mesmo”, escreveu Freud à sua amada esposa Martha que administrava o lar enquanto o marido fazia suas expedições pelo Mediterrâneo. Após quinze dias vagando pela capital da Sicilia, decidiu visitar Agrigento e Siracusa: espécie de santuário da antiga civilização grega.
Antes de partir ao encontro dos templos gregos no extremo sul da ilha, Freud escreveu um solene juramento na carta à Martha: “Prometo solenemente que, durante as iminentes fainas do ano, recordarei sempre que já recebi e consumi a minha melhor parte nesta vida. Estar aqui é o coroamento de que já realizei até agora. Ainda não tinha visto o conjunto com tanto esplendor, tantos panoramas, perfumes e tanto bem-estar também. Tenho daqui a visão de síntese. Ainda desejo encontrar em Siracusa algo de bom. Para não dizer que estou feliz e assim despertar a inveja dos deuses, digo-lhe que hoje lemos notícias sobre o cólera em Nápoles”.
No final da viagem, relatou a Carl Gustav Jung: “A viagem foi rica e substanciosa e satisfez diversos desejos, o que há muito tempo era necessário para a economia psíquica. A Sicília é a região mais bela da Itália e conservou trechos verdadeiramente únicos da antiguidade grega desaparecida, reminiscências infantis que permitem extrair conclusões a respeito do complexo de Édipo”.
Na Sicília, Freud encontrou a gênese da civilização ocidental e, ao mesmo tempo, a gênese de seu percurso, desde os Estudos sobre Histeria (1895) até o Totem e Tabu (1912). De igual modo, foi a realização de um sonho: percorrer os lugares visitados e narrados por Goethe; os templos da Concordia, de Juno, de Júpiter, de Hércules, de Esculápio. As mais preservadas reminiscências da infância da civilização ocidental.
Enquanto Freud tinha sua singular perspectiva da viagem, o companheiro Sándor Ferenczi estava capturado num conflito irredutível: ser o discípulo/filho ou o amigo liberto do ideal identificatório com a figura do mestre/pai. Angustiado e assolado pela ansiedade, o jovem médico de Budapeste não conseguiu usufruir da paisagem e nem dos encantos da mítica ilha italiana. Passou os dias deprimido e macambuzio, capturado pela dúvida neurótica: ser ou não ser.
Como destaquei nesta série, podemos acompanhar na Correspondência Freud & Ferenczi a gênese da amizade e as consequências desta viagem na relação entre eles. Por suposto, como estavam juntos no período da viagem, há um hiato de um mês nas cartas.
Ferenczi tomou a iniciativa de escrever (28/09/1910) assim que retornou: “Lamento não ter sido um companheiro à altura do que o Sr. desejava. Minha demanda neurótica de ter um pai e ser educado por ele estragou o passeio. Espero que, apesar disso, possa continuar desfrutando de sua amável companhia. Por ora, gostaria apenas de dar um sinal de vida e agradecer de coração os esforços que o Sr. tem feito como comandante da viagem”.
Freud respondeu com amabilidade, dizendo guardar apenas “recordações calorosas e simpáticas” da companhia do amigo húngaro. No entanto, confessou que sua expectativa era dele se libertar da demanda infantil de ter um pai potente e modelo a ser seguido. “Esperava que o Sr. estivesse ao meu lado como um companheiro em pé de igualdade, o que não lhe foi possível. Sua inibição e devaneios fez com que se isolasse. A mim, coube respeitar sua dificuldade”.
Diante da franqueza de Freud, a resposta de Ferenczi é um dos mais expressivos exemplos da relação transferencial analítica em atuação no conjunto da Correspondência. Primeiro, reconheceu que a interpretação de Freud sobre a demanda infantil estava correta.
Lamentou-se dizendo: “foi uma terrível falta de consideração de minha parte estragar suas merecidas férias. Esperar que o Sr. me educasse como um pai, mostrando a mim os meus defeitos, foi demasiado inoportuno. Prometo me esforçar para estar em pé de igualdade e ser-lhe um amigo fiel”.
Esforçou-se tanto que veio morrer de exaustão aos 60 anos em 1933. No obituário, Freud reconheceu a fidelidade do amigo e a felicidade de contar com sua amável presença: “Por vários anos passamos as férias de outono na Itália e vários ensaios que fazem parte da literatura psicanalítica nasceram nestes passeios. É impossível imaginar que a história da nossa ciência o esqueça algum dia”.
Livros e Lugares – Caderno de Domingo – Jornal de Piracicaba – 15/jun/2015