A Lisboa do Pessoa

 

A Lisboa do PessoaÉ emocionante ouvir/ver Cleonice Berardinelli, uma senhora carioca de 98 anos, declamar as palavras de Fernando Pessoa(s). Cada sílaba encontra seu tom afetivo correspondente e, numa miríade de palavras, vai compondo um pas de deux com a baiana Maria Bethânia. O feliz encontro ocorreu primeiramente na FLIP 2013 e depois ampliado no filme de Marcio Debellian, (o vento lá fora). Gravado em estúdio, o encontro faz uma ode à potência estética na poesia do múltiplo escritor português nascido no dia de Santo Antônio.

O plural e mais expressivo nome da literatura portuguesa foi meu primeiro encontro com a poesia em prosa e versos. Arrebatado pela escrita visceral e inventiva de Pessoa tomei gosto pela literatura e daí em diante, os livros passaram à persofinicação: amigos e companheiros de jornada.

Sob a pena de Pessoa tornei-me pessoa a reconhecer em si, os afetos que transmitiu em palavras. Com ele, realizei minha alfabetização literária e me lancei no oceano das significações. Aprendi: ler/escrever é uma atividade lúdica, brinquedo de palavras em livros. Pessoa ensinou a livrar-se do desassossego utilizando o recurso da arte. Afinal, porque a arte é bela? Por que é inútil. Porque a vida é feia? Por que é toda cheia de fins, propósitos e intenções – proclamou Bernardo Soares (meu heterônimo favorito).

Pessoa tinha tanto a dizer que foi preciso inventar outros tantos de si mesmo, com nome e identidade estética própria. Pessoa se fez pessoas: heterônimos autônomos. Inventou-se muitos numa escrita fluída, cartografando a língua materna numa pluralidade de estilos poéticos. O Ser e o Sentir enovelaram-se para sempre de modo oblíquo.  Escreveu o vivido e o que não foi vivido, inventou.

Se o poeta é um fingidor: fingir a dor e assim realizar o nobre trabalho de sublimação da angústia, a nos assolar dia e noite. O psicanalista Jacques Lacan dizia que a angústia é o único afeto que não engana. A arte de Pessoa é a mais elevada forma de enganar a angústia, desviando sua patológica presença nos estados de sofrimento psíquico.

Ao fingir a dor que deveras sente, o escritor alcançou o estatuto universal. Sua dor é a mesma de todo bicho falante: ser-para-a-morte. A universalidade da angústia permite a qualquer leitor se identificar em sua prosa poética. E, do mesmo modo que o escritor vasou seu estado afetivo no ato da escrita, o leitor encontra no texto sua imagem invertida. Ele diz o que sinto e não consigo dizer.

A deusa Fortuna agraciou-me com a condição de vizinho do modesto sobrado onde Fernando Pessoa viveu o crepúsculo de sua existência nos últimos 15 anos de vida no bairro Campo de Ourique em Lisboa.

Transformada em 1993 como Casa de Cultura, o imóvel abriga objetos como a máquina de escrever, os óculos e blocos de apontamentos. O dormitório está preservado tal como o dia de sua morte com 47 anos de idade. Adentrar neste ressinto é viver uma epifania com frases grafadas nas paredes. Um templo à meditação, tendo por companhia, além dos livros publicados e traduzidos em dezenas idiomas, a biblioteca particular do autor, digitalizada e disponível para consulta online.

Numa das visitas recordei o primeiro encontro com o Livro do Desassossego e dos efeitos transformadores que realizou em meu pueril espírito. Numa edição primorosa de 1986, organizada por Leyla Perrone-Moisés, publicada no Brasil pela saudosa editora Brasiliense, o heterônimo Bernardo Soares, ajudante de guarda-livros na cidade de Lisboa, compõe espetacular cenário da capital portuguesa em seu modus vivendi.

Na Introdução, a organizadora ressaltou: “A Lisboa de Soares é uma cidade oprimida, de névoa e céu carregado, povoada de pessoas vulgares e barulhentas, que se movem como fantoches, entrando em bondes ou saindo das tabacarias, carregando mercadorias, trabalhando em escritórios sombrios. Nessas descrições ocorre um milagre escritural: o que é descrito é vulgar e depressivo; mas o que nos é transmito é a comunicação de um profundo amor pela cidade”. Um genial paisagista do cenário externo e interno, dos estados d’alma.

Livros e Lugares – Caderno de Domingo – Jornal de Piracicaba – 22/jun/2015