Antes de chegar à Sicília, estamos reconstruindo em capítulos, o histórico da relação entre Freud e seu jovem admirador de Budapeste. No artigo anterior, deixamos os dois amigos em Hamburgo, na casa de Madame Seidler, espécie de pitonisa moderna. Tal como a sacerdotisa do Templo de Apolo, ela era um misto de médium, vidente e cartomante com certa fama pela Europa no início do século 20.
Por insistência de Ferenczi, Freud aceitou acompanhá-lo à consulta com a Madame. As primeiras cartas cambiadas, após o retorno da viagem à América, atestam esta emblemática experiência com fenômenos parapsicológicos.
A cena lembra, com espantosa semelhança, o relato da Defesa de Sócrates diante da assembleia de atenienses, no ato de julgamento pelos crimes de corrupção dos jovens e ser o filósofo ímpio para com os deuses. Numa viagem com Querefonte, amigo de infância, Sócrates visitou o templo de Apolo em Delfos.
Diante da Pítia, a sacerdotisa do templo, Querefonte perguntou se havia alguém mais sábio que Sócrates. Ao que ela respondeu pela negativa. Sócrates, desconfiado como só, pôs se a refletir: “O que será que quer dizer o deus? Que sentido oculto pôs na resposta? Eu cá não tenho consciência de ser nem muito nem pouco sábio; o que será que o deus quer significar, declarando-me o mais sábio”.
Por certo, Madame Seidler percebeu que a questão do saber estava em jogo na relação entre o discípulo, querendo um mestre e o mestre, querendo um amigo. O embate com o saber estava presente também na relação de Ferenczi com Jung. A Clark University concedeu o título Doctor Juris Honoris Causa à Freud e Jung. O ciúme emergiu como sintoma dominante no percurso da viagem ao território americano.
Nos livros Correspondência Freud & Ferenczi há precioso arquivo para acompanhar a História do Movimento Psicanalítico. Entre cartas, cartões e telegramas, o leitor descobre o que os historiadores chamam de microhistória. Este evento com Madame Seidler é bom exemplo.
A viagem aos EUA foi tensa entre Ferenczi & Freud. Para compor o outro vértice e formar o triângulo, estava Carl Gustav Jung, o discípulo escolhido para levar adiante a nau dos psicanalistas pelo mundo. Lembremos que foi por intermédio de Jung que Freud concedeu horário para receber a visita do jovem médico de Budapeste. E, desde o início, Ferenczi foi invadido por sentimentos de rivalidade: ou ele ou eu.
Antes de embarcar à América, Ferenczi relatou ao “Caro Professor” de Viena que seu problema gástrico havia passado: “na verdade, fiz de tudo para que passasse pois não queria ser um companheiro de viagem maçante”. Foi exatamente isso o que foi para Freud: um aborrecimento. Mesmo assim, Freud não se deixou abater pela disputa fratricida dos dois companheiros.
Estava feliz por ter encontrado o reconhecimento acadêmico em solo americano para sua invenção: a psicanálise. Tempos depois, lembrando da viagem, afirmou: “Na Europa, eu me sentia como alguém excomungado; ali, em solo americano, eu me vi acolhido pelos melhores pensadores liberais como igual. O momento em que subi ao atril em Worcester para falar sobre minha invenção foi a realização de um sonho inimaginável”.
Na primeira carta, após a sessão com a vidente, Ferenczi confessou: “As observações de Frau Seidler sobre maturidade intelectual e sobre o fato do Sr. ter superado tudo o que há de mais humano, correspondem exatamente a longa meditação em que mergulhei no navio durante a viagem de volta. Foi quando descobri, dolorosamente, a minha infantilidade com relação ao Sr. e sua personalidade, como exemplo a ser imitado”.
A carta continua como um singular registro do processo analítico subliminar à correspondência. “Diante desta descoberta surgiu um pensamento arrogante: prefiro ser assim como sou, pelo menos sou feliz, uma criança feliz. Mas o Sr. parece ser tão velho intelectualmente, explicando tudo, dissolvendo todas as próprias paixões em pensamentos, que não pode ser feliz. Mas, logo percebi que este pensamento era uma resistência frente à verdade revelada: minha infantilidade ciumenta”.
Concluiu destacando: “O ciúme com relação à Jung deixou em mim um pensamento infantil de que o Sr. não me ama integralmente (meu modo de pensar, minha boa vontade e meu anseio por conhecimento)” É nesta demanda infantil de amor integral que irá naufragar a viagem à Sicília.:
Livros e Lugares – Caderno de Domingo – Jornal de Piracicaba – 31/mai/2015