As montanhas bávaras de Berchtesgaden serviram de cenário para a primeira viagem de Sigmund Freud com seu admirador Sándor Ferenczi. O médico vienense, criador da psicanálise, apreciava caminhar em região de montanha com a família e seus filhos praticavam alpinismo.
Em poucos meses de contato, o médico húngaro foi convidado a passar as férias de verão/1908 com a família Freud. De pronto, revelou-se exímio alpinista e conquistou a simpatia dos filhos e, por extensão, veio a ser um dos amigos eleitos e um dos maiores discípulos da causa/coisa freudiana e membro fundador da Associação Psicanalítica Internacional em 1910.
Na residência de Freud, em janeiro/1908, ocorreu o diálogo inicial. Gustav Jung, o primeiro estrangeiro a se interessar pelas descobertas freudianas, intercedeu solicitando um encontro com dois médicos de Budapeste que tinham desejo de conhecer o autor dos livros, A Interpretação dos Sonhos e Psicopatologia do Cotidiano. A visita foi agendada e, num domingo à tarde, desembarcaram em Viena, o neuropsiquiatra Philippe Stein e o médico do serviço de saúde, Sándor Ferenczi.
No dia seguinte, Ferenczi enviou carta de agradecimento, registrando seu desejo: “sou imensamente grato por sua disposição em receber-me, um desconhecido para o senhor. No último ano, tenho me ocupado de sua teoria do inconsciente e fui convidado a expor suas ideias na Sociedade Real de Médicos de Budapeste. Escolhi o seguinte título: Neuroses atuais e psiconeuroses à luz das pesquisas de Freud e a psicanálise. O público é formado por médicos, em parte ignorantes e, em parte, mal-informados. Gostaria também de ser um mestre neste novo terreno delimitado pela experiência clínica do senhor”.
Um discípulo se dirige ao mestre enunciando seu desejo de se tornar um mestre também. A história de vida deste médico húngaro de 37 anos foi totalmente marcada por seu engajamento no trabalho de divulgação da invenção freudiana por todo leste europeu. Ferenczi veio a ser o psicanalista de toda geração de jovens médicos que inscreveram seus nomes na história do movimento psicanalítico no alvorecer do século 20. Ocupou também a função de mestre na teoria e na prática, na organização e internacionalização da psicanálise.
Quinze dias depois, um novo encontro ocorreu para um chá da tarde. Conversaram animadamente enquanto Ferenczi narrava sua experiência clínica no serviço de saúde pública. Freud nutria esperança de que a técnica psicanalítica pudesse ser aplicada também no espaço público de atendimento à saúde psíquica. Ferenczi representava a porta pela qual a experiência clínica e a teoria pudesse sair do espaço privado.
O conjunto de cartas que compõem os livros Correspondência Freud & Ferenczi, cambiadas entre 1908 a 1933, é um precioso arquivo para investigar a gênese desta longa e produtiva amizade. O projeto de publicação da Correspondência no Brasil pela editora Imago naufragou na década de 1980. Os dois livros publicados registram a troca de cartas de 1908-1914 e, lamentavelmente, estão esgotados há muito tempo.
Nesta série, vamos reconstruir o percurso da relação Freud & Frerenczi até a viagem à Palermo, na Sicília, em setembro/1910. Viagem marcante com desdobramentos para ambos. Sob o sol do mediterrâneo viveram uma situação dispare. Freud desejando à companhia de um amigo com quem pudesse compartilhar seu interesse pela aplicação da psicanálise no tratamento de casos de psicoses. Ferenczi demandando um pai que acolhesse seu estado de desamparo. Um conflito foi instaurado deixando um rastro e resto não elaborado por Ferenczi e com consequências destrutivas.
Desde o encontro inicial, da primeira até a última carta, Ferenczi dirigia a palavra à Freud chamando-o de Ilustríssimo Professor. Por sua vez, Freud iniciou com Caro Colega e, após a primeira viagem, Caro Amigo. A única exceção ocorre em duas cartas após a viagem à Sicilia. Pela insistência da demanda do amigo por um pai, Freud dirigiu-lhe a palavra, com certa ironia, chamando-o de Caro Filho. E justificou: “preferia ter um amigo autônomo; mas como você está criando tantas dificuldades, sou obrigado a aceita-lo como filho. Sua luta de libertação não precisa se desenrolar entre as alternativas de revolta e da submissão. E, não exija de mim mais do que estou disposto a lhe conceder de bom grado”.
Os pronomes de tratamento, em relações regidas por etiquetas e convenções, são insígnias importantes para reconhecer a dissimetria entre o que Freud esperava e o que recebeu do amigo húngaro.
Livros e Lugares – Caderno de Domingo – Jornal de Piracicaba – 17/mai/2015