Freud e a 1ª Guerra Mundial

Dentre os acontecimentos trágicos tingidos de horror que sucederam a declaração de guerra à Sérvia pelo Império Austro-Húngaro, motivado pelo assassinado do arquiduque Francisco Ferdinando e sua esposa por um nacionalista sérvio em julho/1914, destaco a invasão das tropas alemãs na Bélgica com o propósito de atacar a França pelo norte. Em 25/08/1914 os alemães incendiaram uma das mais valiosas bibliotecas da Europa com 300 mil volumes, destruíram 2 mil edifícios e expulsaram 10 mil habitantes de suas casas.

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Este fato singular demonstra não só as atrocidades inexplicáveis da guerra bem como o declínio dos ideais civilizatórias construídas ao longo do século 19, inspiradas pela filosofia iluminista ao defender a soberania da razão como conquista da maioridade moderna. A razão como princípio unificador dos povos da Europa perdeu seu estatuto conquistado pela Revolução Francesa em 1789 sob o emblema dos significantes: liberdade, igualdade, fraternidade. Antes da guerra, a civilização européia havia se tornado o paradigma de modernidade e as cidades de Viena, Budapeste, Paris, Londres e Berlim eram os lugares predominantes de representação da vida moderna.

No período da 1ª Guerra Mundial, o vienense Sigmund Freud era reconhecido internacionalmente como o médico criador de um revolucionário método de tratamento do sofrimento psíquico, a psicanálise. Sua fama havia cruzado o Atlântico, sendo agraciado com o título “doctor honoris causa” na Clark University em Worcester (Massachusetts/USA), proferindo 5 conferências que encantaram o público americano. Também foi indicado ao Prêmio Nobel, conquistando uma legião de seguidores interessados em praticar a psicanálise. Sociedades Psicanalíticas foram criadas em grandes centros da Europa e 4 Congressos Internacionais de Psicanálise já haviam sido realizados. Os livros principais de Freud tinham tradução em diversos idiomas e, a crescente popularidade, arrastava consigo adversidade proporcional de críticos e dissidentes, dentre os mais famosos Carl Gustav Jung e Alfred Adler.

A clínica de Freud sofreu forte impacto com a guerra. O reconhecimento público ampliou significativamente o número de pacientes e discípulos em formação. Com os desdobramentos da guerra e as precárias condições de sobrevivência, sua clínica esvaziou. Os 3 filhos primeiros filhos de Freud se alistaram e foram para o campo de combate. Vários de seus colaboradores médicos também foram convocados para servir nos agrupamentos militares e o movimento psicanalítico paralisou suas atividades de pesquisa e publicação. Com o tempo ocioso, Freud escreveu os fundamentos metapsicológicos da psicanálise e determinou as diretrizes técnicas da prática clínica de tratamento das neuropsicoses.

Para ocupar o tempo de angústia a espera de notícias de seus filhos, Freud proferiu aos sábados à noite no auditório da Universidade de Viena, nos anos de 1915/1916, uma série de palestras a um público de médicos e leigos. Com habilidade retórica impecável apresentou os principais temas e problemas que constituem a teoria e a prática da psicanálise. No conjunto, as 28 Conferências Introdutórias à Psicanálise, dividas em 3 partes (os atos falhos; os sonhos; teoria geral das neuroses), representam com propriedade o percurso de Freud até então. (O leitor brasileiro pode ter acesso a estas conferências através da preciosa tradução direta do alemão, recém publicadas no volume 13 da Coleção Obras Completas pela editora Companhia das Letras. É um relevante material no conjunto das publicações em curso neste ano em que rememora o centenário da 1ª Guerra Mundial).

Sobre a posição de Freud a respeito da guerra é sugestivo ler o artigo Considerações Atuais sobre a Guerra e a Morte, escrito em 1915 (publicado no volume 12 da coleção supracitada). Na 1ª parte, Freud interroga a desilusão causada pela guerra que desconstruiu a ilusão iluminista de modernidade civilizatória: “Não é apenas a mais sangrenta e devastadora do que as guerras anteriores, devido ao poderoso aperfeiçoamento das armas de ataque e de defesa, mas pelo menos tão cruel, amargurada e impiedosa quanto qualquer uma que a precedeu. Ela transgride todos os limites que nos impusemos em tempos de paz, que havíamos chamado de Direito Internacional. Ela derruba o que se interpõe no seu caminho, em fúria enceguecida, como se depois dela não devesse existir nem futuro nem paz entre os homens. Ela destrói todos os laços comunitários entre os povos que combatem uns aos outros, e ameaça deixar um legado de amargura que por longo tempo tornará impossível o restabelecimento dos mesmos”. Na 2ª parte, demonstra que a guerra mudaria definitivamente nossa atitude psíquica diante a morte.

Numa carta (11/1914) a Lou Salomé, fez a seguinte constatação: “Não tenho dúvidas de que a humanidade sobreviverá até mesmo a esta guerra, mas tenho certeza de que para mim e meus contemporâneos o mundo jamais será novamente um lugar feliz. Ele é demasiado horrendo. Minha conclusão secreta sempre foi: a mais elevada civilização atual se assenta numa enorme hipocrisia e somos organicamente inadequados a ela”.

Livros e Lugares – Caderno de Domingo – Jornal de Piracicaba –
24/ago/2014 – Ilustração: Erasmo Spadotto