Elegância à mesa

A elegância à mesa

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Saber comer é um aprendizado que está para além do alimento propriamente dito. O trabalho de desmame introduz, aos poucos, alimentos sólidos, permitindo ao bebê passar do ato de sugar ao ato de mastigar. Neste processo se revela as particularidades: pela experiência, cada criança adquire o próprio gosto.

A relação dos indivíduos com alimentação passou, ao longo da história, por transformações radicais. Há diversos livros e registros que descrevem essa relação. Revistas de gastronomia abundam no mercado editorial demonstrando a grande demanda por saber comer: prescrevem a boa comida e estabelecem regras e preceitos que visam educar o paladar.

O livro “Tratado da vida elegante: ensaios sobre a moda e a mesa” (Cia das Letras) reúne 12 textos de Honoré de Balzac, publicados entre 1820 e 1838 em diversas revistas em Paris. Balzac foi um retratista da vida mundana parisiense num período em que a França teve três reis, duas restaurações, uma revolta e muitas reviravoltas. Com a finesse típica, o autor da “A Comédia Humana” escrutinou a vida urbana em plena convulsão social com a queda do Antigo Regime e a instauração da República: o surgimento de um novo tipo de ser humano para uma nova sociedade.

A elegância como distintivo social tornou-se uma virtude que se adquire através de um laborioso trabalho sobre si. Ser elegante é uma disposição de espírito para inscrever a distinção da individualidade, não mais de classe social: um modo de ser, revelador de bom gosto, requinte, cortesia, decoro, fineza e gentileza.

No seu Tratado, Balzac teorizou a elegância numa “ciência que nos ensina a nada fazer como os outros, aparentando fazer tudo como eles; o desenvolvimento da graça e do gosto em tudo que nos é próprio e nos cerca”. O princípio constitutivo da vida elegante é a unidade, isto é, ser um no convívio com todos. É na singularidade que a elegância se instala. Não é seguir o que a moda estabelece para todos como critério do bom gosto.

O ser elegante cultiva a distinção: trabalha sobre si para ser diferente. É um hábil desenvolvimento do amor-próprio. Neste habilidoso trabalho sobre si, nosso autor descreve em filigranas a toalete, a arte de pôr a gravata, as luvas, o uso das palavras, o modo de andar e comer.

No conjunto de ensaios encontramos um retrato em fino trato da arte de se alimentar. No modo de comer o sujeito revela ou não que é um ser elegante. Pressuposto básico: “a mesa é um lugar de união, de alegria, de fraternidade; junta as delícias da paz com o ardor da coragem e das virtudes guerreiras. O prazer de comer, a função mais habitual de nosso corpo, a necessidade mais imperiosa de nosso ser, foi, portanto, consagrado pelo que há de mais venerável e mais espiritual”.

Para descrever a elegância à mesa, Balzac criou, no ensaio Fisiologia Gastronômica, o contraste entre dois tipos: o bom garfo e o glutão.

“O glutão ignora o princípio elementar da gastronomia, que é a arte sublime de mastigar! Engole pedaços inteiros sem titilar o palato, sem despertar a mínima reflexão. À mesa, jamais ergue os olhos; só pensa no seu prato, o qual ele gostaria que tivesse a capacidade do prato mais enorme; nunca faz um comentário divertido, nada sai de sua boca, tudo entra sem a menor distinção”.

O bom garfo, tipo elegante, “não come para viver, mas tampouco vive para comer; nele, essas duas influências se combinam. Ele cede ao apetite dos sentidos e da imaginação. Um pedaço de comida, ao passar por sua boca, imprime uma sensação e desperta a reflexão; come devagar e saboreia com delicadeza; costuma conversar e sabe bem da alegria que o ato de comer reserva àqueles que comem para além da fome”.

Fonte:
Revista Arraso / Boa Comida
Ano 9; nº 71; 1º semestre/2017
Ao Gato Preto Editora – Piracicaba/SP
Ilustração: Maria Luziano