Deixamos o poeta Goethe na Sicília e incluiremos outro “grand seigneur” do espírito moderno: o filósofo Friedrich Nietzsche. A viagem que realizou ao sul da Itália, outono de 1876, representou também ao jovem professor de filologia clássica na Basiléia (Suíça) uma verdadeira odisseia existencial. O percurso de trem de Genebra até Sorrento, província de Nápoles, foi transformador: morte e ressureição.
Nietzsche realizou no sul, o trabalho de luto, decorrente da ruptura da amizade e ideais comum com Richard Wagner depois do festival de Bayreuth. Luto também de sua almejada carreira universitária e da mudança no campo de suas investigações: da filologia para filosofia. O produto final deste trabalho de luto é a publicação, dois anos depois da chegada em Sorrento, do monumental livro: Humano, Demasiado Humano.
Destaco nesta série, o trabalho de gestação, em ato de escrita, deste livro-acontecimento. O título escolhido foi também traduzido por Coisas Humanas, Demasiadamente Humanas. É um belo exemplar para analisar as relações entre livros e lugares.
De início, indico a pesquisa histórica de Paolo D’Iorio, publicada no livro: Nietzsche na Itália (Editora Zahar, 2014). Nota: o título original é “A viagem de Nietzsche à Sorrento: gênese da filosofia do espírito livre”. O subtítulo escolhido pela tradução brasileira tem um apelo mais comercial: “A viagem que mudou os rumos da Filosofia”. Prefiro designar a viagem ao sul como gênese desta metáfora de ressureição espiritual vivido pelo pensador alemão aos 32 anos de idade.
Nesta idade, Nietzsche já era um senhor a viver o crepúsculo de sua existência, marcada por num momento de grande debilidade física (a perda da visão, fortes dores de cabeça e problemas respiratórios) e severa crise psíquica, agravada pelo contexto da ruptura com Wagner e o pedido de afastamento de sua função na Universidade.
No sul da Itália, ele renasceu tal como a Fênix: da própria cinza. O ato deste renascimento é o livro Coisas Humanas. Em Ecce Homo (seu testamento literário) descreveu o livro gestado no sul como monumento de uma crise: “com ele me libertei do que não pertencia à minha natureza; nele reconheço mais o homem e o tornei um espírito livre. O tom, o timbre da voz nele contida, mudou inteiramente; será considerado um livro inteligente, frio, por vezes duro e sarcástico. E uma certa espiritualidade de gosto nobre parece se impor e sobrepor continuamente a uma corrente mais apaixonada que flui no fundo”.
E continua: “olhando mais detidamente, descobre-se nele um espírito impiedoso, que conhece todos os esconderijos onde o ideal faz sua morada – onde tem suas masmorras e sua última trincheira. É um livro guerreiro, mas uma guerra sem pólvora e fumaça. Meu amigo Peter Gast escrevia enquanto eu lhe ditava cada palavra, frase e, nesta composição conjunta, ele foi no fundo, o verdadeiro escritor e eu fui apenas o autor”.
Esta distinção entre autor e escritor é um aspecto importante na composição do livro: nele está contido a presença dos amigos de Nietzsche – com quem viajou ao sul da Itália. Além da mencionada presença do compositor Johann Heinrich Köselitz, carinhosamente chamado pelo pseudônimo Peter Gast, destaco a soberana presença da condessa Malwida von Meysenbug (também amiga do casal Wagner).
Aos 60 anos de idade ela ocupou a função materna para o filósofo convalescente. A presença e os gestos maternos da condessa podem ser lidos em suas Memórias de uma Idealista, publicado pouco antes de falecer em 1903.No relato do cotidiano da viagem ao sul, Malwida descreveu o contexto da decisão de Nietzsche em partir afim de tirar férias de si mesmo:
“A saúde dele, a quem desde 1872 me uniam os vínculos de uma viva amizade, tornara-se tão precária que solicitou afastamento da função de professor para descansar e recuperar sua força. Sentia-se atraído pelo sul. Parecia aquele grego sedento de beleza que a deliciosa natureza do sul pode ofertar. Ofereci a ele minha companhia para curar seus males e o convidei a passar o inverno comigo em Sorrento, no ‘dolce far niente’ do sul. Consegui uma pensão, situada no meio de um vinhedo, e dirigida por uma alemã. O espaço abrigava a nós todos. Dos quartos com varandas tínhamos a vista magnífica do golfo e o Vesúvio, em plena atividade e, à noite, lançava colunas de fogo para o céu”.
Bela metáfora para designar estado interior, a cabeça do filósofo: um vulcão em erupção.
Livros e Lugares – Caderno de Domingo – Jornal de Piracicaba – 12/abr/2015